Thursday, August 16, 2007

Tricicle - E do génio se fez riso


Quando o texto se faz do corpo, do corpo se faz o gesto e do gesto se faz riso, estamos em presença da genialidade. Essa genialidade aconteceu em Portugal em vários pontos do país, nomeadamente em Coimbra, Évora e Faro, através da iniciativa do INATEL Festivais de Outono. Os protagonistas da difícil arte de fazer rir foram os actores da companhia Clownic de Tricicle, de Barcelona.
“Com espectáculos apresentados por todo o mundo e com muitos prémios arrecadados a Companhia Clownic de Tricicle tem como finalidade fazer rir utilizando um humor subtil, sincero, desinibido, surpreendente, entre o absurdo e a realidade, que tem sido o fio condutor destes anos de existência da companhia. Este humor é canalizado através do gag, elemento indispensável no seu trabalho. O gag rompe a lógica da situação no seu momento crucial, como um tempo musical, para produzir um efeito surpreendente e irreal que provoca a comicidade. Nos seus espectáculos é produzido um gag a cada dez ou quinze segundos, de onde se consegue um ritmo de humor trepidante, chave do seu êxito.”
É natural que o público desconfie quando lê, nas folhas de sala, que o espectáculo a que irá assistir o fará rir de 15 em 15 segundos. Apetece ir para o auditório de cronómetro em punho e verificar milimetricamente se a publicidade não será enganosa. É que depois de termos visto tanta coisa, da crise teimar em não ir embora, acabamos por achar piada a muito pouca coisa e graça a quase nada. Fartos que andamos do formato standart comedy, cada vez somos mais exigentes na procura de um humor saudável que se solta com agrado através de situações inteligentes que fogem do riso fácil.
Quando o público entrou no Auditório da Fundação Pedro Ruivo no passado dia 9 de Dezembro, a expectativa era grande, já que a companhia actuante era desconhecida. O primeiro actor entra em cena e consegue arrancar alguns sorrisos espontâneos pela sua presença simpática e boa disposição. O segundo actor entra em cena e, a partir daí, bem que o público pôde esquecer o cronómetro, que o espectáculo arrancava mesmo gargalhadas atrás de gargalhadas de uma forma natural e aparentemente fácil. Os três actores, Eduard Mendez, Xavier Casals e Benjamí Conesa, tiveram a capacidade de oferecer ao público de Faro uma hora de boa disposição através de um humor inteligente.
Tricicle 20 é uma antologia dos melhores momentos dos 5 espectáculos criados por Tricicle, baseando-se em personagens e acções que acontecem no nosso dia-a-dia depois de passarem pelo tratamento de génio da assunção do grotesco dos nossos actos, elevados ao absurdo. Esse tratamento teve como resultado o provocar de uma torrente inesgotável de riso e boa disposição. Situações como a sala de espera de um aeroporto, as competições da volta a Portugal (ou Espanha, ou França, ou…) em bicicleta, o tédio surgido entre três amigos pasmados frente à televisão ou a dificuldade dos bebés em equilibrarem-se nas suas gigantescas fraldas, foram reconstruídas e apresentadas como elas são na sua crueza: ridículas. Nós, civilizadamente, tentamos esconder o grotesco e polimos com verniz as impurezas. O trabalho de Tricicle é retirar esse verniz enganador, deixando à mostra toda a insuficiência saudável do nosso ser. E com a insuficiência vem a foleirice, o grotesco, o mau gosto e tudo aquilo que imaginamos fazer aos outros quando as coisas nos correm mal. Mesmo o mais terrível. É por isso que o grupo Tricicle não precisa de ir aos temas mais tradicionais de humor fácil: é que nós, humanos, temos tanta matéria para nos rirmos de nós próprios, que aquilo de que precisamos é mesmo da coragem de tirarmos o véu diáfano da hipocrisia e assumir a nossa falta de sentido perante as coisas. O comparar os tamanhos dos telemóveis, que se degladiam numa melodia em cânone, o atirar dos jornais discplicentemente pelas hospedeiras de bordo, que no final já os amarfanham lançando-os violentamente à cara de uma vítima inocente do público, obrigada momentaneamente a assumir o papel de um tranquilo passageiro, o encomendar uma vulgar tampa de sanita que serve para fugir à rotina da televisão, são só algumas das situações que são levadas ao extremo, provocando uma reflexão sobre os nossos próprios exageros, as nossas próprias insuficiências. Os actores de Tricicle optaram pela utilização do gesto como linguagem preferencial não abdicando contudo totalmente da palavra, que aparece ocasionalmente, mas de forma adequada, em voz-off. O gesto, como nos explica o antropólogo Leroy-Gourhain, na sua obra O Gesto e a Palavra, é a linguagem primordial e geradora de sentidos, tanto no plano do quotidiano como no plano mais abstracto de uma comunicação universal. O riso, elevado à categoria de eidética comunicacional, torna-se catártico e libertador de íntimas opressões. Mais eficaz que qualquer Prozac, Tricicle 20 deslumbrou a capital algarvia. No final os actores precipitaram-se para a entrada do conservatório Maria Campina e, num gesto raro no nosso país, cumprimentaram pessoalmente o público que ia saindo, agradecendo às pessoas terem ido ver o seu espectáculo, distribuindo autógrafos com um sorriso, mesmo antes da habitual descompressão nos camarins. Também esta foi uma lição de humildade que os actores da companhia catalã souberam passar.

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