Começou dia 1 de Outubro de 2003 e vai ligeirinho até dia 30 deste mês. Ligeiro, porque as coisas boas sabem a pouco. O VIII Festival Internacional de Dança Contemporânea a Sul continua a trazer-nos as novas propostas da dança contemporânea em Portugal e num país ao Sul. Este ano foi a vez da Argentina. Na entrada da excelente brochura que a Devir costuma editar a propósito desta mostra – um exemplo a seguir por outras estruturas que programam festivais e mostras – o programador deste Festival, José Laginha, faz uma descrição da actual vivência da dança na Argentina, enquadrando o espectador que, de uma forma quase imediata, tende a identificar a dança Argentina com a sua forma mais conhecida, o tango. De facto, o primeiro espectáculo deste Festival cria uma ruptura neste pré-conceito do público mais incauto. Hermosura, espectáculo do grupo independente El Descueve, apresentado no Capa dias 1, 2 e 3, é um espectáculo irónico. Brinca com as idiossincrasias de um povo que alimentou a imagem do macho dominador e sensual que faz rodopiar a sua fêmea, dominando-a na sensualidade do tango. Hermosura rompe com inteligência esta visão redutora e dá ao público um novo conceito da dança a Sul. Uma dança em que os bailarinos/actores interpretam personagens oriundas do nosso consciente colectivo socialmente incorrecto. Seis personagens que ilustram os desejos humanos e indizíveis de sermos arrebatados e beijados por desconhecidos. Paradoxalmente, ao mesmo tempo, lutamos pela demarcação de um ilusório território que não pode ser de ninguém. E depois largamos e partimos para o desconhecido. E depois regressamos a um porto que julgamos seguro. Mas depois não nos chega e largamos outra vez. E é sempre assim. E se calhar esta é uma natureza humana genuína que algumas normas morais tentam branquear para, supostamente, nos protegerem. E foi esta natureza que o grupo El Descueve expôs cruamente.
A cena inicial do espectáculo mostra uma mulher, com ar dominador e tailleur carmesim, a comer um rebuçado. Esse acto de degustação, ampliado, ecoava pela sala. Uma degustação que metaforicamente simbolizava o prazer que servia de mote ao espectáculo. Depois, com um ar determinado e seguro diz: “Eu espero que tu sofras tanto como eu sofri. E rezo para que isso aconteça”. Socialmente incorrecto mas absolutamente verdadeiro, este foi, de certo modo, o mote do espectáculo. Depois, recriando um salão de baile um pouco decadente, há um par que dança e se beija sofregamente. E mais ao fundo vê-se outro par a beijar-se. E um cantor romântico que a páginas tantas também é arrebatado por uma admiradora que o beija. Mas entretanto os pares trocam entre si e a sessão de beijos sôfregos e apaixonados continua. E trocam mais uma vez. Mas, apesar de trocarem, querem resgatar o primeiro par que beijaram. De forma que, no fim, vê-se uma amálgama de corpos envolvendo-se numa luta que mais parece uma orgia. Podemos no entanto perguntarmo-nos: Porque só trocaram de forma heterogénea? Depois desta, outras cenas igualmente fortes, que disparam, destruindo o elemento protector da moralidade conveniente, sucedem-se. A cena do casal em que de dominador, o homem passa a dominado, num forte jogo de palavras e corpo, acabando por atar a sua mulher a uma cadeira é delirante. E quantos homens não gostariam de ter uma bailarina de fio dental dançando para si, cantando sensualmente?
Mas uma das cenas conseguidas do espectáculo foi a cena do monólogo de um sedutor que, num exercício de verborreia masturbatória vai anunciando à sua potencial companheira daquela noite como irá ser bom tudo o que passarem juntos. De tal forma se perde nos seus delírios que a sua companheira o deixa a falar sozinho, talvez em busca de um eventual companheiro mais dado às coisas da acção que da paixão. Ele continua perdido nas descrições, sem se aperceber que ela se foi. E tudo continua a rodar na dança interminável, monótona e repetitiva que é a vida, à procura de uma quebra na rotina. E essa quebra pode acontecer quando uma voz interior, nem sempre sofisticada ou de bom gosto diz: “Descubra o cantor romântico que há em si!” Ou,”Liberte-se e vista-se como uma verdadeira bailarina de cabaret!” E ali acontece o golpe no quotidiano sufocante. E ali acontece o tiro ao alvo de todas as nossas frustrações. O momento em que os actores se colocam à frente de um alvo e lhes são arremessadas alfaces com toda a violência é uma autêntica catarse das tensões do quotidiano. Depois de uma batalha de alfaces entre os seis actuantes, respira-se a frescura deste vegetal na sala. É como que o aliviar da tensão depois do conflito. A cena romântica da perseguição do rapaz pela rapariga iluminada por um strauber é um pouco longa mas depois a nossa inquietação apazigua-se com a projecção de umas cenas eróticas de bom gosto nas cortinas de metal que limitavam a cena.
O final junta todos os intérpretes a cantar uma canção romântica que liberta momentaneamente o público dos preconceitos snobs contra este tipo de actuação. E se eles a cantavam bem. Saímos todos a cantar as “Campanitas” e com vontade de lá voltar. E de ousar vencer a rotina. Para poder continuar a viver.
Dia 15 voltámos, desta vez a Vila Real de Santo António. Estavam anunciados dois espectáculos; Vistas, de Florência Olivieri e Cuadrado negro sobre fondo negro, de Rodrigo Pardo, ambos originários da Argentina. Mais uma vez a ironia, mais uma vez o tango revisitado, tornando-se algo mais que gerador de tensões entre um casal. Ambos muito físicos, com uma corporalidade que procura reinventar a linguagem do tango. Se na primeira coreografia Florência Olivieri põe os bailarinos a dançarem um com o outro na horizontal sugerindo, como diz a coreógrafa, a multiplicidade de pontos de vista, mostradas como que num caleidoscópio de figuras por descobrir. O bandoneón tocado ao vivo por Alejandro Pérez deu à peça o colorido que ela pedia, imersa que estava no cinzento e negro dos bailarinos. Aqui vimos dois corpos construindo figuras dentro de uma geometria no espaço, transformando o movimento em formas animadas que procuram a completude. Um bom trabalho de corpo dentro de uma excelente coreografia.
O segundo espectáculo apresenta o tango argentino de uma forma crua e quase violenta, como a técnica do contact . Utilizando uma fita adesiva que vão colando no chão, um casal vai impondo limites a si próprios, à sua vida. Os limites marcam os encontros e os desencontros. E tal como a canção daquele outro cantor a Sul, Chico Buarque, nós vemos a bailarina a despir as calças do quotidiano vulgar para construir o extraordinário. Vêmo-la então a vestir o tal vestido “cheirando a guardado de tanto esperar” e que irá dar alimento e novo alento ao quotidiano marcado por abraços que por vezes se instalam como muros na vida do casal. E aí os vemos a dançar o tango como só os argentinos o sabem, naquele pequeno pedaço do quotidiano que de repente se tornou extraordinário. Uma reinvenção do mundo, do amor, com várias lições sobre a arte do abraço. Mesmo quando, inadvertidamente, se cai nos braços de um desconhecido e ele nos pergunta: “Você está bem? Apetece-lhe um café?” a vida às vezes é assim. Com algumas quedas acidentais somos amparados por desconhecidos providenciais. E a vida recomeça. Como nos ensaios, repetimos, aperfeiçoamos. E limpamos aquilo que há para limpar, como quando o casal começa a retirar as fitas adesivas do chão, libertando-se dos limites sufocantes que a si mesmos impuseram. Um exemplo a seguir, no palco e na vida.
A cena inicial do espectáculo mostra uma mulher, com ar dominador e tailleur carmesim, a comer um rebuçado. Esse acto de degustação, ampliado, ecoava pela sala. Uma degustação que metaforicamente simbolizava o prazer que servia de mote ao espectáculo. Depois, com um ar determinado e seguro diz: “Eu espero que tu sofras tanto como eu sofri. E rezo para que isso aconteça”. Socialmente incorrecto mas absolutamente verdadeiro, este foi, de certo modo, o mote do espectáculo. Depois, recriando um salão de baile um pouco decadente, há um par que dança e se beija sofregamente. E mais ao fundo vê-se outro par a beijar-se. E um cantor romântico que a páginas tantas também é arrebatado por uma admiradora que o beija. Mas entretanto os pares trocam entre si e a sessão de beijos sôfregos e apaixonados continua. E trocam mais uma vez. Mas, apesar de trocarem, querem resgatar o primeiro par que beijaram. De forma que, no fim, vê-se uma amálgama de corpos envolvendo-se numa luta que mais parece uma orgia. Podemos no entanto perguntarmo-nos: Porque só trocaram de forma heterogénea? Depois desta, outras cenas igualmente fortes, que disparam, destruindo o elemento protector da moralidade conveniente, sucedem-se. A cena do casal em que de dominador, o homem passa a dominado, num forte jogo de palavras e corpo, acabando por atar a sua mulher a uma cadeira é delirante. E quantos homens não gostariam de ter uma bailarina de fio dental dançando para si, cantando sensualmente?
Mas uma das cenas conseguidas do espectáculo foi a cena do monólogo de um sedutor que, num exercício de verborreia masturbatória vai anunciando à sua potencial companheira daquela noite como irá ser bom tudo o que passarem juntos. De tal forma se perde nos seus delírios que a sua companheira o deixa a falar sozinho, talvez em busca de um eventual companheiro mais dado às coisas da acção que da paixão. Ele continua perdido nas descrições, sem se aperceber que ela se foi. E tudo continua a rodar na dança interminável, monótona e repetitiva que é a vida, à procura de uma quebra na rotina. E essa quebra pode acontecer quando uma voz interior, nem sempre sofisticada ou de bom gosto diz: “Descubra o cantor romântico que há em si!” Ou,”Liberte-se e vista-se como uma verdadeira bailarina de cabaret!” E ali acontece o golpe no quotidiano sufocante. E ali acontece o tiro ao alvo de todas as nossas frustrações. O momento em que os actores se colocam à frente de um alvo e lhes são arremessadas alfaces com toda a violência é uma autêntica catarse das tensões do quotidiano. Depois de uma batalha de alfaces entre os seis actuantes, respira-se a frescura deste vegetal na sala. É como que o aliviar da tensão depois do conflito. A cena romântica da perseguição do rapaz pela rapariga iluminada por um strauber é um pouco longa mas depois a nossa inquietação apazigua-se com a projecção de umas cenas eróticas de bom gosto nas cortinas de metal que limitavam a cena.
O final junta todos os intérpretes a cantar uma canção romântica que liberta momentaneamente o público dos preconceitos snobs contra este tipo de actuação. E se eles a cantavam bem. Saímos todos a cantar as “Campanitas” e com vontade de lá voltar. E de ousar vencer a rotina. Para poder continuar a viver.
Dia 15 voltámos, desta vez a Vila Real de Santo António. Estavam anunciados dois espectáculos; Vistas, de Florência Olivieri e Cuadrado negro sobre fondo negro, de Rodrigo Pardo, ambos originários da Argentina. Mais uma vez a ironia, mais uma vez o tango revisitado, tornando-se algo mais que gerador de tensões entre um casal. Ambos muito físicos, com uma corporalidade que procura reinventar a linguagem do tango. Se na primeira coreografia Florência Olivieri põe os bailarinos a dançarem um com o outro na horizontal sugerindo, como diz a coreógrafa, a multiplicidade de pontos de vista, mostradas como que num caleidoscópio de figuras por descobrir. O bandoneón tocado ao vivo por Alejandro Pérez deu à peça o colorido que ela pedia, imersa que estava no cinzento e negro dos bailarinos. Aqui vimos dois corpos construindo figuras dentro de uma geometria no espaço, transformando o movimento em formas animadas que procuram a completude. Um bom trabalho de corpo dentro de uma excelente coreografia.
O segundo espectáculo apresenta o tango argentino de uma forma crua e quase violenta, como a técnica do contact . Utilizando uma fita adesiva que vão colando no chão, um casal vai impondo limites a si próprios, à sua vida. Os limites marcam os encontros e os desencontros. E tal como a canção daquele outro cantor a Sul, Chico Buarque, nós vemos a bailarina a despir as calças do quotidiano vulgar para construir o extraordinário. Vêmo-la então a vestir o tal vestido “cheirando a guardado de tanto esperar” e que irá dar alimento e novo alento ao quotidiano marcado por abraços que por vezes se instalam como muros na vida do casal. E aí os vemos a dançar o tango como só os argentinos o sabem, naquele pequeno pedaço do quotidiano que de repente se tornou extraordinário. Uma reinvenção do mundo, do amor, com várias lições sobre a arte do abraço. Mesmo quando, inadvertidamente, se cai nos braços de um desconhecido e ele nos pergunta: “Você está bem? Apetece-lhe um café?” a vida às vezes é assim. Com algumas quedas acidentais somos amparados por desconhecidos providenciais. E a vida recomeça. Como nos ensaios, repetimos, aperfeiçoamos. E limpamos aquilo que há para limpar, como quando o casal começa a retirar as fitas adesivas do chão, libertando-se dos limites sufocantes que a si mesmos impuseram. Um exemplo a seguir, no palco e na vida.
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