Depois de alguns anos de interregno o centro dramático do Algarve volta a apresentar uma produção. Um projecto que conta com a experiência do actor domingos Semedo mas que peca pelo desequilíbrio dos outros actores. Um projecto ambicioso, a precisar de formação.
No passado dia 17 de Julho de 2004, na Associação social e Cultural de Almancil, (ASCA) o Centro Dramático do Algarve, que já não tínhamos oportunidades de apreciar há uns anos, levou a cena a produção O Pianista, da autoria Domingos Semedo. Domingos Semedo foi também o encenador e principal intérprete desse espectáculo. O bonito pátio interior da ASCA, que possibilitou ao público um agradável serão, assistindo a um espectáculo ao ar livre, não conseguiu, porém, limpar todos os problemas que este espectáculo teve.
Começando pelo texto, o Pianista fala-nos de uma história trágica vivida por um músico que foi traído na sua vida, em todos os sentidos: pela sua fama, pela sua música, pela sua mulher, pelo seu país. Um homem amargo que, com o passar dos anos, se vai conformando com a sua tragédia. Irónico quanto baste, corrosivo quanto baste, toca em pontos-chave sobre o interesse e a corrupção da classe política. Tem intervenções e raciocínios muito interessantes sobre a arte em geral, os artistas, e o perigo que, muitas vezes, esta classe representa para o poder. O texto é conseguido nos monólogos ou nas grandes falas que a personagem principal, Domingos Semedo, interpreta. Perde a força quando as falas passam para as outras personagens. Perde fluidez, coloquialidade; por momentos, parece que se torna literário, para logo retornar a um tom mais verdadeiro quando regressa à personagem do pianista. Estranho fenómeno, que se verifica sobretudo no diálogo violento que o pianista tem com a filha, quando esta lhe anuncia a sua intenção de casar. Há um desequilíbrio textual, onde se percebe que o autor não domina o universo feminino, complicando-o mais do que ele já é. De resto, é um texto que se reveste de uma crítica social e política corrosiva e fundamental.
O problema começa quando Domingos Semedo, com a segurança que a experiência lhe deu, é confrontado com os outros actores. É o desastre completo. O espectáculo começa com um belíssimo tema de Chopin, recriando o cenário de uma lição particular em casa do professor que anda de cadeira de rodas. Quando o professor fala, estamos em presença de um professor exigente, com as mágoas e a amargura de quem já não pode tocar, mostrando-se intolerante com a falta de concentração da aluna. Quando a aluna começa a falar, não é uma aluna. É uma actriz nervosa e insegura que ainda tem muito que aprender antes de pisar um palco. O tormento e o contraste vão subindo de tom à medida que surgem novas personagens. A governanta, supostamente mais idosa que o pianista, perde verdade quando lhe fala com uma voz, uma postura, uma máscara de mulher jovem, que não se soube transfigurar. Não basta embranquecer os cabelos e desenhar umas rugas para, de repente, incorporar uma governanta respeitável, daquelas que conhecem todos os segredos de uma casa e se tornam parte dela. Houve preocupação em saber dizer texto fluentemente. Houve preocupação em cumprir à risca todas as marcações. Não houve preocupação em modificar a ligeireza no andar, em trabalhar o olhar sábio dos que já viram tudo, em moderar a contenção nos gestos, e aperfeiçoá-los nas mãos e nos olhos, que falam mais que as palavras. A Tia Tula poderia ser interpretada por uma mulher jovem, como o foi, mas esta personagem teria de ter sido trabalhada por dentro, e não apenas a partir do figurino que, de resto, estava pobre.
Quando entra em cena a filha do pianista, Luciana, o tom contrastante é moderado mas o texto não deixa que a tensão evolua com verdade. Luciana, tem um cinismo e uma agressividade que soam a falso em virtude da própria representação. Falta ver, naquela interpretação, a mágoa da menina que foi abandonada pelo pai nos afectos aos cinco anos. É uma agressividade construída no momento e não trabalhada por dentro mais uma vez. Com a entrada do noivo de Luciana, o espectáculo perde de vez a verdade até aí sustentada por Domingos Semedo. O jovem actor, para ale de demasiado jovem para a personagem que lhe coube, não se sentia à vontade dentro do figurino que lhe impuseream. Também nas suas palavras, com tom frágil e trémulo, não resultou, de todo, o discurso cheio de sinuosidades e interesses maquiavélicos de um homem ambicioso. O seu olhar assustado, de menino perdido, contrastava com as suas palavras racionais, lógicas e frias, de quem não olha a meios para atingir os seus fins políticos. O pai do noivo veio completar o ramalhete, mostrando-se em perfeito contraste com a personagem que interpretava: um ex-informador de um regime tirânico que torturava os presos políticos. Por todos eles, Domingos Semedo passava incólume, trazendo a única nota de autenticidade ao espectáculo. Faltou, para além da verdade na interpretação dos actores, a nota simbólica que distingue um espectáculo banal de outro com o toque de alguma genialidade.
No fundo, quando um grupo se quer afirmar dentro de uma linha profissional de teatro naturalista mais perto da linha de Stanislavski, deve aprender com esse mestre o que a memória afectiva pode trazer a uma personagem. Deve vivê-la, incorporá-la dentro dos limites que se exige na arte dramática. Vontade existe, trabalho também, falta a formação. Esse trabalho de construção por dentro, demora anos, mas pelo qual qualquer actor, antes de pisar o palco, deve passar para o merecer.
No passado dia 17 de Julho de 2004, na Associação social e Cultural de Almancil, (ASCA) o Centro Dramático do Algarve, que já não tínhamos oportunidades de apreciar há uns anos, levou a cena a produção O Pianista, da autoria Domingos Semedo. Domingos Semedo foi também o encenador e principal intérprete desse espectáculo. O bonito pátio interior da ASCA, que possibilitou ao público um agradável serão, assistindo a um espectáculo ao ar livre, não conseguiu, porém, limpar todos os problemas que este espectáculo teve.
Começando pelo texto, o Pianista fala-nos de uma história trágica vivida por um músico que foi traído na sua vida, em todos os sentidos: pela sua fama, pela sua música, pela sua mulher, pelo seu país. Um homem amargo que, com o passar dos anos, se vai conformando com a sua tragédia. Irónico quanto baste, corrosivo quanto baste, toca em pontos-chave sobre o interesse e a corrupção da classe política. Tem intervenções e raciocínios muito interessantes sobre a arte em geral, os artistas, e o perigo que, muitas vezes, esta classe representa para o poder. O texto é conseguido nos monólogos ou nas grandes falas que a personagem principal, Domingos Semedo, interpreta. Perde a força quando as falas passam para as outras personagens. Perde fluidez, coloquialidade; por momentos, parece que se torna literário, para logo retornar a um tom mais verdadeiro quando regressa à personagem do pianista. Estranho fenómeno, que se verifica sobretudo no diálogo violento que o pianista tem com a filha, quando esta lhe anuncia a sua intenção de casar. Há um desequilíbrio textual, onde se percebe que o autor não domina o universo feminino, complicando-o mais do que ele já é. De resto, é um texto que se reveste de uma crítica social e política corrosiva e fundamental.
O problema começa quando Domingos Semedo, com a segurança que a experiência lhe deu, é confrontado com os outros actores. É o desastre completo. O espectáculo começa com um belíssimo tema de Chopin, recriando o cenário de uma lição particular em casa do professor que anda de cadeira de rodas. Quando o professor fala, estamos em presença de um professor exigente, com as mágoas e a amargura de quem já não pode tocar, mostrando-se intolerante com a falta de concentração da aluna. Quando a aluna começa a falar, não é uma aluna. É uma actriz nervosa e insegura que ainda tem muito que aprender antes de pisar um palco. O tormento e o contraste vão subindo de tom à medida que surgem novas personagens. A governanta, supostamente mais idosa que o pianista, perde verdade quando lhe fala com uma voz, uma postura, uma máscara de mulher jovem, que não se soube transfigurar. Não basta embranquecer os cabelos e desenhar umas rugas para, de repente, incorporar uma governanta respeitável, daquelas que conhecem todos os segredos de uma casa e se tornam parte dela. Houve preocupação em saber dizer texto fluentemente. Houve preocupação em cumprir à risca todas as marcações. Não houve preocupação em modificar a ligeireza no andar, em trabalhar o olhar sábio dos que já viram tudo, em moderar a contenção nos gestos, e aperfeiçoá-los nas mãos e nos olhos, que falam mais que as palavras. A Tia Tula poderia ser interpretada por uma mulher jovem, como o foi, mas esta personagem teria de ter sido trabalhada por dentro, e não apenas a partir do figurino que, de resto, estava pobre.
Quando entra em cena a filha do pianista, Luciana, o tom contrastante é moderado mas o texto não deixa que a tensão evolua com verdade. Luciana, tem um cinismo e uma agressividade que soam a falso em virtude da própria representação. Falta ver, naquela interpretação, a mágoa da menina que foi abandonada pelo pai nos afectos aos cinco anos. É uma agressividade construída no momento e não trabalhada por dentro mais uma vez. Com a entrada do noivo de Luciana, o espectáculo perde de vez a verdade até aí sustentada por Domingos Semedo. O jovem actor, para ale de demasiado jovem para a personagem que lhe coube, não se sentia à vontade dentro do figurino que lhe impuseream. Também nas suas palavras, com tom frágil e trémulo, não resultou, de todo, o discurso cheio de sinuosidades e interesses maquiavélicos de um homem ambicioso. O seu olhar assustado, de menino perdido, contrastava com as suas palavras racionais, lógicas e frias, de quem não olha a meios para atingir os seus fins políticos. O pai do noivo veio completar o ramalhete, mostrando-se em perfeito contraste com a personagem que interpretava: um ex-informador de um regime tirânico que torturava os presos políticos. Por todos eles, Domingos Semedo passava incólume, trazendo a única nota de autenticidade ao espectáculo. Faltou, para além da verdade na interpretação dos actores, a nota simbólica que distingue um espectáculo banal de outro com o toque de alguma genialidade.
No fundo, quando um grupo se quer afirmar dentro de uma linha profissional de teatro naturalista mais perto da linha de Stanislavski, deve aprender com esse mestre o que a memória afectiva pode trazer a uma personagem. Deve vivê-la, incorporá-la dentro dos limites que se exige na arte dramática. Vontade existe, trabalho também, falta a formação. Esse trabalho de construção por dentro, demora anos, mas pelo qual qualquer actor, antes de pisar o palco, deve passar para o merecer.
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