Friday, August 17, 2007

O grande equívoco


O Teatro das Figuras convidou as escolas da Região para assistirem ao espectáculo Lilás. Um espectáculo baseado num texto de Jon Fosse produzido pelos Artistas Unidos destinado ao público adolescente. Um espectáculo sem a cor lilás que se ficou pelas intenções.
Quem tivesse assistido à “conversa desfigurada” sobre a adolescência promovida pelo Teatro das Figuras no dia 30 de Janeiro, a propósito do espectáculo Lilás, de Jon Fosse, com tradução Pedro Porto Fernandes dramaturgia Jorge Silva Melo e Miguel Castro Caldas, produzido pelo grupo Artistas Unidos, teria certamente ficado com curiosidade para a interacção que iria ocorrer durante a sua representação. A certeza, a segurança com que o colectivo de actores (António Simão, João Miguel Rodrigues, Paulo Pinto, Pedro Carraça e Sylvie Rocha ) falou sobre os espectáculos para adolescentes, a crítica explícita aos professores que minimizam as capacidades dos jovens, infantilizando-os, a censura a companhias profissionais que descobriram uma nova forma de se afirmar, apresentando espectáculos para adolescentes que visavam sempre os mesmos temas, com um cunho moralista, indiciava um espectáculo que tivesse tido de facto uma preocupação séria para com a faixa etária dos 14 aos 18 anos, independentemente de acreditarmos se o conceito de adolescência é uma fase construída artificialmente ou se assume como um estágio específico de passagem, onde se muda a pele. A facilidade com que António Simão criticou os professores que fazem uma reescrita dos temas vicentinos, de acordo com a qual adoptam objectos do contemporâneo para as suas personagens, fez-nos pensar que estes actores tinham de facto encontrado uma escrita assumidamente contemporânea e forte, que iria finalmente impressionar os jovens. Aliás, toda a descrição da descoberta das novas dramaturgias motivaram os três professores de teatro, que já há mais de uma década trabalham com adolescentes, e que constituíam a quase totalidade do público da tal conversa desfigurada, para assistirem com um outro olhar ao espectáculo Lilás.
Os actores marcaram o diálogo insistindo no facto de que a peça de Jon Fosse era suficientemente aberta para emocionar crianças, jovens e adultos, apesar do discurso que se encontra nos textos cedidos pela produção dos Artistas Unidos afirmar peremptoriamente que “este não é um espectáculo para crianças”. De facto, se escutarmos a voz do próprio Jon Fosse, ele diz-nos a propósito da sua escrita na revista nº 4 dos Artistas Unidos: “Eu escrevo quase sem ponto de partida, sem imagem, sem plano, escrevo só. Vou escrevendo, variações. Há um momento em que tudo tem de se resolver. Se calhar é por isso que as coisas acontecem tão abruptamente no final das minhas peças. (…) [As minhas personagens nunca têm cara,] são vozes. Sou muito pouco visual. A não ser para as didascálias, que têm a ver com os movimentos dos corpos no espaço. Não escrevo personagens no sentido tradicional do termo. Escrevo partes do humano.”
No entanto, a passagem destas boas intenções para o plano do real do espectáculo revelaram-se estéreis e improdutivas. Quando um adolescente chega ao pé do professor que o levou ao teatro e lhe diz: “professor, eu tinha preferido ir à aula de História”, podemos ser levados a pensar que aquele aluno é um amante incondicional da História. Mas quando vemos uma turma de alunos médios dizer: “professor, para vermos isto, mais vale ficarmos nas aulas”, é caso para reflectirmos no que terá acontecido num espectáculo de uma produção concebida para a adolescência, a partir de um texto de um dramaturgo que escreve para a adolescência, com actores que tudo sabem teoricamente sobre a adolescência. De facto, o que faltou foi um espectáculo para a adolescência. A cenografia de Rita Lopes Alves foi o primeiro elemento que despertou a atenção do público -1600 jovens da região que esgotaram o teatro das figuras nos dois dias de espectáculo destinados às escolas. Ouviu-se dizer: “Olha, que bonito!” Uma divisão de paredes gastas e sujas repleta de latas vazias pelo chão e instrumentos de uma banda um pouco ao abandono pelo espaço. A luz de Pedro Domingos intensificou a ambiência decadente pedida pelo texto. Os actores António Simão e Sylvie Rocha entraram em cena tentando impor a sua presença ao difícil público de jovens. Jon Fosse designou-os como O Rapaz e A Rapariga numa clara tentativa de lhes retirar a identidade, integrando-os na grande categoria dos adolescentes. Sylvie Rocha faz um uso adequado da sua figura frágil e delgada e, como excelente actriz, é convincente no seu papel de adolescente. António Simão precisaria de um pouco mais que de uma figura adequada para ser convincente como adolescente, mas não o conseguiu. O seu corpo desajeitado poderia corresponder de alguma forma ao corpo em formação do adolescente mas a sua representação falsa descolou os jovens do sentido da sua personagem. Esta primeira cena, fundamental para a criação do sentido dramático do espectáculo foi totalmente destruída por não ter havido uma presença em cena que cativasse o público. O texto, minimal, repetitivo, dá conta desse desconforto imposto por uma moralidade vigente. É interessante o jogo de silêncios incómodos criados entre o Rapaz e a Rapariga mas um espectáculo que assenta nas pausas, nos silêncios, na linguagem gestual, tem necessariamente de ter actores credíveis. A partir do momento em que os adolescentes vêem actores na casa dos trinta anos a encarnar de forma pouco credível miúdos de 15 anos, desligam-se do espectáculo. Quando as didascálias são cumpridas ao milímetro, mostrando hábitos nórdicos que não têm referência entre os países mediterrânicos, como o ritual do descalçar os sapatos à entrada de uma cave suja e imunda para calçar outros sapatos, é o sentido do texto que se suja. De facto, é natural que os alunos tivessem perguntado: “por que é que eles andavam sempre a calçar e a descalçar os sapatos?” E o sentido ficou-se por aí. Quando o namorado da Rapariga, o Baterista, chega à cave a tensão aumenta. A sombra da moralidade burguesa da posse começa a fazer-se sentir e mesmo depois da saída da Rapariga há uma luta de demarcação de terreno entre o Baterista e o Rapaz, que leva este último a querer abandonar o projecto da banda. Um sonho alimentado de instrumentos em segunda mão e de um tema composto pelo Rapaz, inspirado pelo desgosto extremo da perda da única pessoa que o amparou: a avó. Perdidos na vida, abandonados a si próprios, estes jovens explodem de acordo com o grau da sua emoção. Os outros membros da banda chegam, cumprem o ritual dos sapatos, tocam um fragmento de uma música e seguem à procura de outro guitarrista para a banda. Porque ninguém é insubstituível. Nem mesmo o Rapaz que compôs o tema sofrido dedicado à avó. Nesta cena, o encenador João Miguel Rodrigues teve o bom senso de se pôr a si próprio a tocar de costas para o público, para não o chocar com a evidência da distância imensa que vai de si à adolescência. A luta de machos desenvolvida pelo Rapaz e pelo Baterista fica resolvida com a desistência do baterista pelo projecto da banda. Com essa desistência o Baterista desinteressa-se pela posse da rapariga, cuja reputação a maledicência, que, pelos vistos é um fenómeno também partilhado pelos países do 1º mundo, já tinha destruído. Num projecto que tenta não tomar posições moralistas, a suspeita de infidelidade causada pelo simples facto da Rapariga estar numa mesa de café a conversar com outro rapaz, é no mínimo estranha.
A última cena passa-se entre o Rapaz e a Rapariga. Esta regressa à cave sombria e é agredida pelo Rapaz. Como qualquer adolescente mediterrânico o Rapaz sente uma posse inexplicável pela Rapariga que é objecto de desejo. No entanto, o facto da Rapariga não se debater perante a agressão do Rapaz, criando uma suspensão de movimento, retira verdade à cena. Mais inverosímil é a posterior reacção da Rapariga que afaga o rosto do seu agressor, saindo da cena de mãos dadas com o seu agressor. Será que Jon Fosse está a voltar à moralidade do “quanto mais me bates, mais gosto de ti?” Teria sido extremamente anti pedagógica, se não tivesse sido patética, a visão de uma rapariga, que para além de não se defender, ainda saía com um ar apaziguado com um rapaz depois de ter sido agredida por ele.
Depois de assistirmos ao espectáculo, e a avaliar pelas vaias que se ouviram, podemos reflectir sobre várias coisas: o que é que esta novíssima dramaturgia emergente destinada à adolescência tem a ver com a adolescência? Será o facto de uns actores de trinta anos representarem pessoas de 15 anos num cenário decadente? Qual foi a mais valia para os 1600 alunos da região? Ver os actores dos Artistas Unidos a descalçarem-se quando entram em casa? E o resto? O plano formativo? O que é que um espectáculo desprovido de sentido pode dizer aos jovens? É uma opção discutível mas válida fazer espectáculos para adolescentes sem lhe impor um cunho moralista. Outra coisa é fazer um espectáculo amoral e catalogá-lo como um espectáculo sobre adolescentes criado sob a égide de um projecto para dramaturgias juvenis.
Os jovens algarvios não ficaram emocionados com o espectáculo. Não tanto pelo facto de serem menos sensíveis a caves decadentes ou a silêncios intensos, mas por terem vindo a ser, desde há cerca de seis anos, formados para o teatro pelo protocolo que a companhia de teatro do Algarve (ACTA) estabeleceu com a Direcção Regional de Educação do Algarve. Espectáculos como O Longo Sono da Heroína, o Auto da Frequentada, ou o recente Nexo dos Sexos, com encenação de Ana Baião, tratam os adolescentes de igual para igual sem falsos moralismos, falando de todos os temas olhos nos olhos. Depois de verem os espectáculos da ACTA os jovens desejam voltar ao teatro, apesar de todas as possíveis incongruências dramatúrgicas que alguma elite bem pensante rejeita. E para que não haja um hiato formativo, os alunos que vêem os espectáculos da ACTA recebem gratuitamente um programa elaborado, concebido por técnicos especializados. Este trabalho de sapa aberto pela ACTA permitiu aos jovens que viram o espectáculo Lilás não se curvarem perante a sabedoria elitista de um grupo da capital. Tanta preocupação em fazer uma dramaturgia para adolescentes e nem um opúsculo entregue à entrada com contributos para a leitura do espectáculo. Pelo menos, para explicar a razão do nome do espectáculo. Lilás não teve a ver neste espectáculo com movimentos feministas nem com a tranquilidade proposta pelo significado da cor. Lilás é uma variação do roxo, a cor do sofrimento. O sofrimento necessário à transformação para um outro estado.
O problema de fundo é um problema estruturante. É um problema de se confiar nas estruturas que podem ser parceiras na educação dos jovens. Uma programação que se preocupa com as questões verdadeiramente estruturantes tem de estar atenta aos espectáculos para os quais lança reptos aos professores/formadores. E as questões que se colocam depois de visto o espectáculo Lilás passam por saber se os programadores viram o espectáculo antes de o agendar. Se não o viram, é grave, pois quando estamos a entrar no campo da educação/formação não podemos ser levianos ao ponto de confiar apenas no nome de um grupo que não está no terreno com os adolescentes. Se viram o espectáculo, então teria sido melhor que se fizessem acompanhar de um técnico de educação que trabalha todos os dias com adolescentes. Esse técnico teria dito ao senhor programador responsável pela Educação e Formação: Isto é um grande equívoco, pois este não é um espectáculo para adolescentes. E se é para ver isto, será melhor ficarem na aula de História.

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