É bom sair do teatro com a sensação de estarmos reconciliados com a vida. Essa é uma das funções do Teatro e foi isso que aconteceu no Teatro Lethes e em Lagos, no Centro Cultural. Talvez Camões foi Teatro em estado puro. Definitivamente o melhor espectáculo da temporada até ao momento.
Foi na sexta-feira, dia quatro de Março que aconteceu um dos raros momentos em que gregos e troianos chegaram a acordo, saindo do Teatro Lethes abraçados numa mesma emoção. E o caso não era para menos: o programa dessa noite tinha sido o espectáculo Talvez Camões da companhia do Chapitô, com encenação de Jonh Mowat. Depois de ver aquele espectáculo ficámos a perceber o que os gregos queriam dizer com as sensações de catarse, extravasamento e libertação. E para além de a termos compreendido, soubemos que era verdade. No espectáculo do Chapitô, a partir da segunda frase que os actores proferem, o público é apanhado num misto de absurdo, simplicidade, inteligência, bom gosto e nunca mais consegue deixar de rir. Sem palavrões, sem gestos obscenos, sem o recurso ao facilitismo. Como é isso possível? Com milhares de horas de laboratório, muita inteligência e sensatez, rigor, trabalho, mas, sobretudo uma disponibilidade e uma sabedoria que permite penetrar no universo do faz de conta das crianças. O espectáculo Talvez Camões é um espectáculo que faz uma crítica social a vários níveis. A partir daquilo que se supõe ter sido a vida de Luís Vaz de Camões Jonh Mowat arrasa as instituições, os costumes, as idiossincrasias, fazendo uma crítica certeira ao povo português em geral. Pegando na ideia do classicismo renascentista o espectáculo inicia-se com os três actores – Jorge Cruz, José Carlos Garcia e Rui Rebelo – interpretando Júpiter, Vénus e Baco, os três deuses do Olimpo que Camões recupera para o seu poema Épico, rindo divertidos ao descobrirem a versão hebraica do mito cosmogónico. Nesta primeira cena que desconstroi todo o estereótipo de seriedade e sobriedade que os deuses, mesmo os romanos, costumam ter, há um extravasamento e um excesso que remete o espectador para a estética do espectáculo. O trono olímpico do senhor dos raios é remetido a um sofá contextualizado num quarto de boémio universitário a abarrotar de beatas e garrafas de vinho a rolarem pelo chão. A tradição não é, de facto, o que era, e os deuses, invejosos dos outros deuses, querem continuar a dominar na imaginação humana o poder demiúrgico. Os deuses, que andam às beatas e lutam por uma garrafa de vinho, são incumbidos de escolher alguém que conte a sua história. Alguém ao acaso dentro da lista da humanidade do século XVI. Alguém de Portugal, não por sermos um país de poetas, mas por nessa altura este país ser a mais poderosa potência com colónias em todos os continentes. Júpiter alicia Baco com uma garrafa de vinho tinto e ordena-lhe que inspire a futura mãe do futuro poeta dos seus feitos. Talvez… Camões. E manda a chave com que selou o precioso líquido para Portugal. País onde não se dança de alegria ao som do flamengo mas se chora ao som do fado. A partir daí, desde o nascimento do poeta até à sua morte, sucedem-se as mais inverosímeis peripécias que nos divertem, mantendo a linha estética do espectáculo. Uma linha em que a linguagem teatral dispensa um grande número de elementos cenográficos e se apoia numa gestualidade que dá corpo ao texto e ajuda a criar o imaginário preenchido pelo espectador. Neste tipo de estética não se põe sequer a questão do sexo das personagens, pois o actor é apenas o suporte que o adereço, através do símbolo, faz realçar. Os actores estão vestidos normalmente, com as suas roupas de ensaio. Mas a força que os símbolos adquirem faz que olhemos para um actor de barba e acreditemos que estamos perante Vénus, ou Catarina de Ataíde, ou Ana de Sá ou uma bela rapariga marroquina. E a crítica social prossegue metendo o dedo na ferida dos costumes burgueses, das instituições e do ensino obsoleto, da deificação dos heróis que são apenas homens que gostam de fumar, de beber, de amar e de viver a vida o melhor possível. Donos de uma agilidade invejável, a inter-acção entre os actores flúi, dando-nos uma genial aparência de facilidade. Lindíssimas as cenas da biblioteca, com um jogo de actores impressionante, onde até se explora o pormenor do livro em desequilíbrio na estante, e a do naufrágio, onde Camões, supostamente, salvou o seu manuscrito épico. Um adereço muda uma personagem ou um cenário numa fracção de segundos. Os actores são caravelas, tempestades, camelos, bibliotecas, donzelas, vilões, e nós entramos no jogo tal como quando éramos crianças e dizíamos: “agora eu sou o índio. Não, agora sou o polícia e tu o ladrão.” E era verdade, porque era genuíno. . Foi esse sentido genuíno de que só as crianças são capazes que a Companhia do Chapitô trouxe ao Algarve. Apesar de reconhecermos naquele trabalho ideias trabalhadas noutros contextos, como o jogo de espadas em play-back patente no filme “Eles morreram” de Tom Stoppard, sobre a peça Hamlet de Shakespeare, o que é facto é que adaptaram essas ideias a um novo contexto e resultou. E mais do que a originalidade, o que é interessante é a aplicação de ideias que resultam noutros contextos, trabalhando assim para a imortalização das ideias que valem a pena. Três actores, uma viola, um sofá, três golas renascentistas, três lençóis, algumas garrafas, muitas beatas e mais meia dúzia de adereços provaram-nos que o teatro acontece quando é trabalhado com seriedade. Com seriedade podemo-nos dar ao luxo de desconstruir o mais intocável tabu. Pegar em qualquer texto e virá-lo do avesso, baralhá-lo e tornar a dá-lo. E se houver bons actores e uma direcção inteligente, a magia acontece. Foi o que aconteceu com este espectáculo. Que o digam as gentes que lotaram o teatro Lethes dia 11 e que saíram do teatro um bocadinho mais reconciliados com a vida.
Foi na sexta-feira, dia quatro de Março que aconteceu um dos raros momentos em que gregos e troianos chegaram a acordo, saindo do Teatro Lethes abraçados numa mesma emoção. E o caso não era para menos: o programa dessa noite tinha sido o espectáculo Talvez Camões da companhia do Chapitô, com encenação de Jonh Mowat. Depois de ver aquele espectáculo ficámos a perceber o que os gregos queriam dizer com as sensações de catarse, extravasamento e libertação. E para além de a termos compreendido, soubemos que era verdade. No espectáculo do Chapitô, a partir da segunda frase que os actores proferem, o público é apanhado num misto de absurdo, simplicidade, inteligência, bom gosto e nunca mais consegue deixar de rir. Sem palavrões, sem gestos obscenos, sem o recurso ao facilitismo. Como é isso possível? Com milhares de horas de laboratório, muita inteligência e sensatez, rigor, trabalho, mas, sobretudo uma disponibilidade e uma sabedoria que permite penetrar no universo do faz de conta das crianças. O espectáculo Talvez Camões é um espectáculo que faz uma crítica social a vários níveis. A partir daquilo que se supõe ter sido a vida de Luís Vaz de Camões Jonh Mowat arrasa as instituições, os costumes, as idiossincrasias, fazendo uma crítica certeira ao povo português em geral. Pegando na ideia do classicismo renascentista o espectáculo inicia-se com os três actores – Jorge Cruz, José Carlos Garcia e Rui Rebelo – interpretando Júpiter, Vénus e Baco, os três deuses do Olimpo que Camões recupera para o seu poema Épico, rindo divertidos ao descobrirem a versão hebraica do mito cosmogónico. Nesta primeira cena que desconstroi todo o estereótipo de seriedade e sobriedade que os deuses, mesmo os romanos, costumam ter, há um extravasamento e um excesso que remete o espectador para a estética do espectáculo. O trono olímpico do senhor dos raios é remetido a um sofá contextualizado num quarto de boémio universitário a abarrotar de beatas e garrafas de vinho a rolarem pelo chão. A tradição não é, de facto, o que era, e os deuses, invejosos dos outros deuses, querem continuar a dominar na imaginação humana o poder demiúrgico. Os deuses, que andam às beatas e lutam por uma garrafa de vinho, são incumbidos de escolher alguém que conte a sua história. Alguém ao acaso dentro da lista da humanidade do século XVI. Alguém de Portugal, não por sermos um país de poetas, mas por nessa altura este país ser a mais poderosa potência com colónias em todos os continentes. Júpiter alicia Baco com uma garrafa de vinho tinto e ordena-lhe que inspire a futura mãe do futuro poeta dos seus feitos. Talvez… Camões. E manda a chave com que selou o precioso líquido para Portugal. País onde não se dança de alegria ao som do flamengo mas se chora ao som do fado. A partir daí, desde o nascimento do poeta até à sua morte, sucedem-se as mais inverosímeis peripécias que nos divertem, mantendo a linha estética do espectáculo. Uma linha em que a linguagem teatral dispensa um grande número de elementos cenográficos e se apoia numa gestualidade que dá corpo ao texto e ajuda a criar o imaginário preenchido pelo espectador. Neste tipo de estética não se põe sequer a questão do sexo das personagens, pois o actor é apenas o suporte que o adereço, através do símbolo, faz realçar. Os actores estão vestidos normalmente, com as suas roupas de ensaio. Mas a força que os símbolos adquirem faz que olhemos para um actor de barba e acreditemos que estamos perante Vénus, ou Catarina de Ataíde, ou Ana de Sá ou uma bela rapariga marroquina. E a crítica social prossegue metendo o dedo na ferida dos costumes burgueses, das instituições e do ensino obsoleto, da deificação dos heróis que são apenas homens que gostam de fumar, de beber, de amar e de viver a vida o melhor possível. Donos de uma agilidade invejável, a inter-acção entre os actores flúi, dando-nos uma genial aparência de facilidade. Lindíssimas as cenas da biblioteca, com um jogo de actores impressionante, onde até se explora o pormenor do livro em desequilíbrio na estante, e a do naufrágio, onde Camões, supostamente, salvou o seu manuscrito épico. Um adereço muda uma personagem ou um cenário numa fracção de segundos. Os actores são caravelas, tempestades, camelos, bibliotecas, donzelas, vilões, e nós entramos no jogo tal como quando éramos crianças e dizíamos: “agora eu sou o índio. Não, agora sou o polícia e tu o ladrão.” E era verdade, porque era genuíno. . Foi esse sentido genuíno de que só as crianças são capazes que a Companhia do Chapitô trouxe ao Algarve. Apesar de reconhecermos naquele trabalho ideias trabalhadas noutros contextos, como o jogo de espadas em play-back patente no filme “Eles morreram” de Tom Stoppard, sobre a peça Hamlet de Shakespeare, o que é facto é que adaptaram essas ideias a um novo contexto e resultou. E mais do que a originalidade, o que é interessante é a aplicação de ideias que resultam noutros contextos, trabalhando assim para a imortalização das ideias que valem a pena. Três actores, uma viola, um sofá, três golas renascentistas, três lençóis, algumas garrafas, muitas beatas e mais meia dúzia de adereços provaram-nos que o teatro acontece quando é trabalhado com seriedade. Com seriedade podemo-nos dar ao luxo de desconstruir o mais intocável tabu. Pegar em qualquer texto e virá-lo do avesso, baralhá-lo e tornar a dá-lo. E se houver bons actores e uma direcção inteligente, a magia acontece. Foi o que aconteceu com este espectáculo. Que o digam as gentes que lotaram o teatro Lethes dia 11 e que saíram do teatro um bocadinho mais reconciliados com a vida.
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