Thursday, August 16, 2007

Um pesadelo de Verão


Como afirma Harold Bloom: "Nada escrito por Shakespeare antes de SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO se equipara a essa peça e, até certo ponto, nada escrito por ele depois irá superá-la. Trata-se, sem dúvida, de sua primeira obra-prima, perfeita, uma das suas peças que apresentam força e originalidade admiráveis." De facto, o mundo onírico e imagético de Shakespeare, que junta nessa peça fadas, duendes, elfos e outras criaturas mágicas com os encontros e desencontros amorosos dos humanos tem sido uma das mais trabalhadas nos teatros ocidentais. Lisandro ama Hérmia que ama Lisandro e é amada por Demétrio, que é amado por Helena; depois, Demétrio ama Helena, que ama Demétrio e é amada por Lisandro, que é amado por Hérmia. Desencontros que Shakespeare trata com um humor único e que são tema recorrente de espectáculos de final de ano nos grupos escolares. O texto prende pela beleza da construção shakespeareana e pela criação de um mundo paralelo de seres fantásticos, permeável aos humanos no solstício de Verão. Quem quer que, atraído pela mística deste texto, fosse à Fábrica da Cerveja à procura do lirismo da mais mágica peça de Shakespeare para poder sonhar de olhos abertos ter-se-á sentido barbaramente enganado. O espectáculo encenado por Francisco Salgado desenvolve-se em duas salas contíguas que o espectador escolhe aleatoriamente. Na sala que escolhe, assiste de forma integral às cenas que lá se passam e entrevê, adivinhando, o que se passa na sala contígua. Uma opção interessante que nos leva para a metáfora das relações entre as pessoas. Nunca se chega a conhecer de forma total e absoluta o outro. Uma das salas, repleta de malmequeres no tecto, é como que uma imagem do mundo ao contrário sentido em muitas relações amorosas. Eu amo-te e tu não me amas. A partir daqui o mundo fica sem sentido, havendo como que uma obliquidade no olhar perante a vida. Essa vertigem oblíqua, causadora de uma paralaxe ontológica do real pode arrastar uma vivência numa derrapagem sem retorno. Essa derrapagem, expressa nas rampas de uma das salas, são o cenário do culminar de três pessoas derrotadas pelo seu sentimento de perda perante a vida. Na outra sala adivinha-se um chão repleto de água, um charco gigante no qual se afundam os sentimentos genuínos, apodrecidos pelo abandono. A luz, desenhada por Rui Cabrita, criava ambiências sombrias, adequadas ao drama psicológico. Quatro actores, Wagner Borges, Mia Farr, Milton Lopes e Rita do Vale Capela percorriam as duas salas num jogo físico intenso, fazendo com que o seu corpo fosse o eco ampliado das palavras geradoras de emoção. Cada actor expressava à sua maneira a deriva provocada pelo amor não correspondido. Entre o demasiado gritado e o sussurro impeditivo de se ouvir o texto, os actores por vezes encontravam o tom adequado. O espectáculo de Francisco Salgado faz uma depuração do texto shakespeareano, transformando a deliciosa comédia em quatro monólogos desesperados e obsessivos. O sofrimento leva a que se coma papel, se bata com a cabeça nas paredes, se puxe a vida com um peso insustentável, se grite. Mas neste texto de Shakespeare, depois do sofrimento vem a reconciliação: com o outro e com a vida, facto que este espectáculo omitiu. Podemos perguntar-nos: porquê apresentar um espectáculo sem retorno a partir de um dos mais belos textos de Shakespeare? Porquê um espectáculo trágico a partir de uma comédia? Porquê dizer ao público: “entre no espírito shakespeareano”, se o foco principal desta peça, a comédia de enganos, não está sequer apontado?
O trabalho dramatúrgico de Joana Craveiro reduziu o texto de Shakespeare a seis páginas onde os quatro jovens, Demétrio, Lisandro, Helena e Hérmia, se sentem desencontrados e à deriva, ignorando toda a trama passada na floresta mágica. Algo redutor para um enredo tão complexo como o da história original. Dessas seis páginas, o depuramento foi tal, que se reduziu a uma meia dúzia de frases que os quatro actores repetiam incessantemente, mostrando o desespero da traição amorosa. Mas essa raiva, esse desespero, esse sentir-se na beira de um vulcão prestes a entrar em erupção é tema de milhares de histórias. Então porquê basear-se numa peça de Shakespeare desvirtuando-lhe o sentido, quando se têm textos excelentes da dramaturgia universal que apontam para esse sentimento de não retorno? O título deveria ser mudado para “Um pesadelo de Verão”, pois é exactamente com essa sensação que se sai do espectáculo.
O trabalho dos quatro actores é intenso, se bem que, por vezes, roce o exagero. As marcações, criadas a partir do espaço da Fábrica da Cerveja, têm a marca da tensão corporal trabalhada por Luca Aprea. O espectáculo, como exercício final de uma formação, apesar de deprimente, é interessante. Como espectáculo de teatro apostado num dos grandes objectivos de Faro Capital da Cultura é desadequado. Desadequado porque de uma formação que supostamente iria durar duas semanas e durou uma semana, em que era suposto os mentores do projecto escolherem quatro actores do Algarve, escolheram apenas uma actriz: Rita do Vale Capela. Excelente actriz, por sinal, mas só uma. Os outros três actores, também excelentes, são actores já formados pela escola de teatro e cinema do conservatório de Lisboa e do Curso de Estudos Teatrais de Évora. Se era um whokshop de formação para ensinar algo do processo de formação de um espectáculo, qual o sentido de incluírem neste projecto três actores já formados? Desadequado também quanto às opções dramatúrgicas. Joana Craveiro é uma excelente dramaturga, como pudemos verificar no trabalho trazido ao Algarve pelo Teatro do Vestido Lugar Nenhum – Cartografia Emocional da construção de um mundo novo. Como dramaturgista as suas opções são discutíveis. E no fundo, se é um projecto de formação para o Algarve, porque não trabalhar com dramatrugistas algarvios, que os há, e bons? E formados pela Universidade do Algarve com professores da Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa. Porque não veio o encenador para o Algarve trabalhar com uma equipa formada por gente da região? Só assim se poderá deixar a tal semente de que tanto se fala. Finalmente, é desadequado porque quem conhece o trabalho de Luca Aprea, quem conhece e trabalhou a fundo o texto de Shakespeare, quem já participou em processos de criação de espectáculos até pode encontrar algum sentido nesta apresentação. Nada de original mas interessante como produto de uma formação. Também temos tido inúmeras formações que originam espectáculos e que, despretensiosamente, são aquilo que são: interessantes resultados de formações. Como projecto que ensina alguma coisa a pessoas ligadas ao teatro, é capaz de ter ensinado muito pouco, pois já se viram por aqui muitas coisas interessantes. Como projecto que tem como objectivo a angariação de mais públicos para o teatro, é capaz de se ter ficado por umas imagens bonitas que afastaram algumas pessoas de uma coisa muito aborrecida que viram e que lhes disseram ser um espectáculo sobre uma peça de Shakespeare. Trabalhos experimentais, há muitos grupos aqui no Algarve que também os fazem e bons, como o grupo a_fábrica, o grupo Tretas, a associação olfactopelaforma, só para falar de grupos de Faro. A questão que fica é: então porquê um projecto destes, com estas pessoas, num contexto de formação de públicos e de “futuros actores algarvios”? O Algarve precisa de ver bons espectáculos, como a maior parte das produções que Faro Capital da Cultura já trouxe. Não precisa deste tipo de formação. Parafraseando Shakespeare, “Algo vai mal no reino dos Algarves.”

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