Thursday, August 16, 2007

Foi um grande pandemónio, mas foi bom!


Para quem conhece o sentido de humor de Luís Mourão ao nível do texto dramático decerto suspeitaria que o espectáculo Pandemónio, construído a partir do seu texto homónimo, seria um misto de ironia, crítica mordaz, ternura e inteligência. E de facto, quem assim pensou, não se enganou nas suas conjecturas. Pandemónio é um texto que fala sobre a origem do homem, desde que foi concebido pela vontade do seu demiurgo até à vontade de descobrir algo que o faça ir mais além. A encenação de Andrejz Kowalski dá corpo à euforia contida no texto de Luís Mourão. A cena começa com um mundo informe de onde surge um imponente demiurgo (João Rocha). Logo a seguir surgem os cinco anjinhos do apocalipse anunciado, deliciosos nos seus velocípedes, às voltas no enfadonho paraíso. A decisão de inventar qualquer coisa para quebrar o tédio marcou o tema do espectáculo, assim como a figura de alguém que vive para contrariar tudo o que aparentemente é pacífico. Como o facto aparentemente pacífico do mundo ser redondo. E porque não quadrado? Ou triangular? Mas como quem contraria, inquieta, incomoda, não costuma ter o apoio dos mais poderosos – que o digam Sócrates, Lutero, Galileu e todos os outros incómodos da História – o anjo rebelde sofre o castigo de lhe quebrarem as asas e de cair a rebolar pelo firmamento até à (ainda) inocente Terra. Na Terra, depois do nascimento de todas as criaturas, surge Adão: O homem, africano, e logo a seguir a sua companheira Eva, vindo de uma mesma origem mas desta vez não de uma costela. Depois surge a inquietação, o jogo da descoberta causado pela curiosidade natural da humanidade, instigada por essa estrutura intermediária, demoníaca, na verdadeira acepção do termo. E a humanidade vai crescendo, passando de descoberta a descoberta, desde o fogo até à roda, passando pelos bifaces de pedra. E continua à procura, fazendo da insatisfação a sua própria essência. Até onde esta nossa natureza nos irá levar? Para além da lua, para além do conhecimento que temos de nós próprios.
O espectáculo tem um dinamismo próprio que os actores sabem desenvolver emprestando-lhe o ritmo certo para prender o espectador sem o cansar. Mário Spencer desenha um Adão conferindo-lhe as caricaturas habituais do homem: descuidado, distraído, mas quem tudo está sempre bem, não se preocupando com as “miudezas” da vida. Elisabete Martins surge esplendorosa na sua Eva primordial. Sedutora quanto baste, executando uma coreografia clássica com a sua graça muito especial, é ela que abre caminho a Adão, mostrando-lhe as potencialidades da descoberta. Jorge Soares encarna o espírito crítico da contrariedade com primor, revelando-se solto, sarcático e mordaz. Os nossos sonhos vão-se construindo tomando a forma de uma fantástica máquina de locomoção que vai ganhando rodas, lemes, motores e tudo aquilo que a nossa imaginação for capaz de criar.
No fim há uns que ficam para contar a história e outros que partem porque têm de ir. Simplesmente ir… Porque a nossa ambição de buscar aquilo que está mais além é mais forte que a vontade de ficar.
As soluções cénicas de Kowalski são simples e surpreendentes. O difícil é encontrar o surpreendentemente simples e neste pandemónio tudo encaixa porque tudo parece surpreendentemente simples. Delirante a cena em que a joaninha flutuante é trespassada pela lança e despedaçada até à morte. Ou aquela em que o irritante demónio tenta aspirar a terra que os anjos tentar semear.
A música de Zé Eduardo acompanha na perfeição todos os matizes do espectáculo, quer seja no caos da criação original, quer seja nos momentos mais ternos e envolventes. Mais uma vez Zé Eduardo mostrou ser um excelente compositor para teatro. Tó Quintas continuou a surpreender-nos, emprestando à maquino do sonho um pouco de si próprio: a capacidade de descobrir algo sempre mais além e construí-lo.
Com vários níveis de leitura, o Pandemónio é um espectáculo que se vê com prazer. Mas mais do que isso, é um espectáculo que nos faz reflectir de forma emocionada sobre o sentido da nossa existência.
No final apetece-nos juntar a nossa voz à de Adão e dizer:”Foi um grande Pandemónio, mas foi bom!” Era assim que deveria ser a nossa vida.
Há muito tempo que a ACTA não tinha um espectáculo de Verão assim. Oxalá continue a investir nesta linha.

No comments: