Wednesday, August 15, 2007

A imensidão do espaço vazio


Há quem diga que Peter Brook está para o palco assim como Einstein está para a ciência e Wagner para a música. Faro Capital da Cultura trouxe a Lagos duas encenações do grande mestre do teatro e a plateia encheu-se com gente vinda de todo o país. Aos 80 anos Peter Brook ainda tem muita coisa para ensinar.
Peter Brook em Lagos. Uma frase que é capaz de fazer deslocar multidões àquela cidade periférica de uma não menos periférica região. O encenador que em 1962, com o trabalho Rei Lear constrói a noção de espaço vazio, geradora de um novo conceito de teatro para as futuras gerações. Foi Brook, quem primeiro formulou com clareza a ideia de que teatro pode ser definido a partir de elementos invariáveis, reconhecíveis portanto num maior número de manifestações de raiz teatral. Temos então, segundo Brook, como base minimal de toda a manifestação teatral, um triângulo constituído por um actor, um espectador e um espaço vazio. O teatro é assim definido a partir dos seus elementos constantes e essenciais. Graças a este passo é possível pensar uma teoria da teatralidade que permita revelar uma qualidade dramática num maior número de acontecimentos artísticos. Parece-nos serem estes alguns elementos imprescindíveis para um pensamento que se queira articular com a situação contemporânea da arte. Talvez por isso se possa dizer que o seu nome evoca uma fronteira que divide o teatro em antes de Peter Brook e depois de Peter Brook.
Os espectáculos de Lagos, A Morte de Krishna e O Grande Inquisidor, protagonizados por Maurice Bénichou, a trabalhar com Brook há mais de 25 anos, mostraram-nos como a simplicidade, aparentemente fácil, pode ser tão harmoniosa. No primeiro texto, o actor sobre um tapete laranja, vestido de preto, cumpre alguns preceitos de acordo com os rituais hindus. O tapete é coberto de pétalas de flores, acendem-se lamparinas e o contador da história de Krisnha enverga respeitosamente uma estola cor de laranja. A função está prestes a começar e o actor, acompanhado por Antonin Sthaly, que vai tocando vários instrumentos orientais, faz com que vejamos, sintamos todas as peripécias que conduziram à morte do ser divino. Como o próprio Brook disse, “As pessoas vão ao teatro por uma única razão, que é viver certa experiência, e essa experiência só acontece no momento da representação”. Com a Morte de Krishna, os espectadores foram transportados para um universo para muitos desconhecido que tem a ver com os mitos cosmogónicos hindus e com todas as personagens que lhes estão inerentes. Ao contador de histórias junta-se o som do esrai, do violino ou dos instrumentos de percussão, contribuindo para uma intensidade mais profunda da vivência da história da humanidade retirada do épico poema hindu Mahabharata. E apesar da maior parte do público não estar familiarizado com todos os seres fantásticos que fazem parte do universo de Krisnha, ele é transportado ao universo das emoções transmitido de forma exemplar por Maurice Bénichou. Um contador de histórias que faz do espaço vazio um manancial de acontecimentos que preenche o nosso imaginário.
O espectáculo O grande Inquisidor, da autoria de Dostoïevski, enquadra-se mais no imaginário judaico-cristão da cultura em que estamos inseridos. A cena passa-se no séc. XVI em Sevilha, quando supostamente o Salvador voltou à Terra. É preso pelo Grande Inquisidor, um velho de 90 anos a quem toda a gente prestava homenagem numa cela do Santo Ofício. Aí assistimos a um grande exercício de retórica, no qual se demonstra que Cristo não pode de maneira nenhuma voltar à Terra, sob pena do Homem perder o seu bem mais precioso: a liberdade, ou neste caso, de uma forma mais filosófica, o livre arbítrio. Sobre um tapete cinzento o Grande Inquisidor, Maurice Bénichou sem qualquer tipo de caracterização nem adereços adicionais, é o velho de olhar encovado que discorre de forma fluida e impõe a argumentação ao outro homem, Antonin Sthaly, protagonizando o Filho do Homem numa contenção admirável. E a voz do Grande Inquisidor penetra nas nossas cabeças: “Aumentaste a liberdade humana em vez de a confiscares e impuseste assim, para sempre, ao ser moral as agonias dessa liberdade.” A imposição de uma fé livre sem ser inspirada pelo maravilhoso é de difícil aceitação. Uma aceitação para seres livres e não escravos que é o atributo da humanidade, segundo o Grande Inquisidor. Por isso ele é o garante dessa liberdade num mundo de escravo suspirando pelo maravilhoso. Por isso o Grande Inquisidor Lhe diz que o odeia, por ter feito da humanidade um juízo mais elevado do que ela realmente merece. E por lhe ter dado a ele, Grande Inquisidor, o terrível fardo de manter nos homens fé pura proveniente unicamente da razão. Tudo isto o público viu e sentiu no espaço vazio de uma cela do Santo Ofício.
O final, selado com um beijo, desconcerta o Grande Inquisidor, que deixa o Messias sair em liberdade, com a recomendação de nunca mais voltar. O Messias compreende e sai, deixando-nos a todos a herança de uma fé racional, sem milagres para a comprovar. Uma encenação que assenta no trabalho de actor e uma interpretação magistral que dá coerência à encenação do grande mestre. Para rever, se não houver paciência para esperar que Peter Brook regresse a Portugal, há a hipótese de seguir o conselho de Maomet e ir à montanha, ou seja, a Paris, ao Théâtre des Bouffes du Nord. Vale a pena.

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