Wednesday, August 15, 2007

Os gregos e os troianos


O Centro de Artes Performativas do Algarve deu a conhecer em estreia absoluta HardcoreI e II: dois espectáculos numa única apresentação. Uma maneira de agradar a Gregos e a Troinanos num espectáculo sobre a condição humana e a esperança que, apesar de tudo, dá continuidade à vida.
Hardcore I e II, uma criação da Mala Voadora, co-produzida pela DeVIR/CAPa e pelo Teatro Taborda. A encenação esteve a cargo de Jorge Andrade e a interpretação foi de
Anabela Almeida, John Romão e Pedro Martinez.
Segundo a produção, “a mala voadora não é, à partida, uma companhia. É uma estrutura de produção mínima, sem elenco fixo e sem encenador residente, ao serviço da invenção de um projecto de teatro. Mais do que fixar um tipo de linguagem ou um estilo, ou trabalhar a partir de textos de um autor ou de uma época em particular – processos que se definem por exclusão – a mala voadora irá desenvolver um trabalho de pesquisa ecléctico. O rumo de desenvolvimento da estrutura mala voadora irá sendo enunciado e descoberto a partir de um trabalho aberto à diversidade do saber e da prática do teatro, bem como da apropriação criativa de culturas visitadas.”
Estes dois espectáculos cumprem de forma adequada o que foi proposto na linha eclética da companhia.
O primeiro espectáculo, assente na expressão física, é uma sátira às guerras, sejam elas domésticas, sejam mais envolventes ao nível de um conflito mundial. A corrida de obstáculos com que se inicia o espectáculo dá-nos o mote: em todas as situações há vencedores e vencidos. Os vencidos sofrem punições, aplicadas pelos vencedores. Em todos estes quadros está patente um sentido de justiça assente numa ética utilitarista e cega. O choro da criança que se ouve sempre que é aplicado um “correctivo” é suficientemente inquietante para o público se interrogar sobre o sentido de justiça patente. O vestir e despir da pele do outro, representado pelos fatos de trabalho pintados com o figurino da personagem chamam a atenção para a multiplicidade de papéis que cumprimos e dos estatutos esperados, de acordo com os papéis sociais. Nas guerras domésticas não há vencedores permanentes e, mesmo no acto mais íntimo que se pode partilhar com os amigos, a refeição, estabelecem-se relações de poder implícitas. O recurso ao vídeo é uma solução que evidencia pormenores essenciais para a construção da personagem e para a percepção de pequenos jogos de poder. A dominar a cena, numa dimensão meta simbólica, está o som cru e brutal das lâmpadas utilizadas para matar insectos voadores. Outro dos jogos de poder em que, supostamente, o Homem é vencedor. Os jogos com o vídeo prolongam-se por uma brincadeira com os vários “donos do mundo” dançando despreocupadamente enquanto decidem o próximo cenário de guerra, mas a cena torna-se desnecessariamente longa, uma vez que o público já tinha assumido a ideia. A inclusão da história contada no filme de Lynch O Homem Elefante foi bastante superficial, pois esse argumento assenta no castigo dado de uma forma sistemática e assumida aos diferentes e não apenas numa relação de força entre iguais. Banalizar assim uma das obras-primas de Lynch pareceu-nos bastante abusivo e deselegante. Tanto que, segundo os princípios da mala voadora, “pretende-se que os projectos da mala voadora propiciem, tanto a abordagem de tipos dramatúrgicos /cénicos de referência e a reflexão crítica sobre as possibilidades de expressão teatral, como a inovação daí resultante.” Inovadora, decerto, mas muito pouco reflexivo. Talvez por ter havido fragilidades o público não conseguiu conter gargalhadas, num espectáculo que, lidando com a violência, a injustiça, os maus-tratos, supostamente, não tinha como objectivo fazer rir. E muito do trabalho de actor assente na fisicalidade e nos sons produzidos por determinados objectos cénicos foi completamente destruído por esta reacção extemporânea do público.
O segundo trabalho apresentou uma linha de encenação completamente diferente, e veio colmatar as falhas encontradas no primeiro. A apresentação do trabalho começa com a mística mesa de redacção, onde se transmitem notícias para o mundo. E para o mundo da informação a excepção é que constitui a notícia. Neste caso, notícias de catástrofes naturais ou provocadas pelo Homem, de forma directa ou indirecta. A construção de pequenos universos que vão sendo evidenciados à medida que o técnico das notícias o refere é sempre uma solução que resulta. Os vários microcosmos, assentes em pequenas mesas, mostram simbolicamente o desencadear de fenómenos que os tornou dignos de notícia e pertencentes, no pior dos sentidos à história da humanidade. Notícias de incêndios, notícias sobre Hiroxima, Cracatoa, desertos gelados, maremotos, Chernobyl, são apresentadas de forma sensível e, algumas vezes, através de relatos contados na primeira pessoa. De forma quase neutra e talvez por isso, mais eficaz.
Dos actores nada há a dizer, a não ser que cumpriram aquilo a que já nos habituaram noutras produções trazidas a Faro. Anabela Almeida continua excelente no seu registo de contenção, que já nos tinha mostrado em 2003 quando trouxe ao CAPa o espectáculo A Mais Forte, John Romão e Pedro Martinez, num registo menos notável mas nem por isso menos conseguido, dando continuidade à prestação apresentada com a produção Perdoar Helena.
A iluminação, da responsabilidade de João de Almeida, foi bastante conseguida. Neste espectáculo estava distribuída por pequenos candeeiros assentes nas diversas mesas que constituíam os universos da catástrofe, o que ajudou à construção de distintos espaços imaginários.
Uma segundo espectáculo, bastante bem conseguido que ultrapassou em larga medida as fragilidades do primeiro. No final, uma mensagem de esperança: a libertação de um peixe num aquário que nada despreocupadamente porque… apesar de tudo, a vida continua a existir. E com ela, a esperança, mesmo com a consciência das fragilidades deste mundo.

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