Wednesday, August 15, 2007

A javardice é democrata


Todos nós conhecemos o humor sarcástico de José Pedro Gomes. Desde o espectáculo Conversa da Treta, feito em parceria com António Feio, que lhe passamos a conhecer a tal verve certeira que põe a nu as nossas idiossincrasias mais sui generis e as vota ao ridículo.
Neste espectáculo, a solo, José Pedro Gomes mostra-se mais corrosivo intensificado pela capacidade de nos rirmos de nós próprios.
Quanto tempo devo esperar que uma carta demore, desde que eu a meto no correio em Faro, até que chegue ao seu destino, em Tavira? Quatro dias? Mas se são só 30 quilómetros, para quê tanto tempo? José Pedro Gomes explica pacientemente que o carteiro tem de esperar que mais cartas para Tavira sejam depositadas para depois as levar todas juntas. Se quisermos que a carta chegue no dia seguinte, temos de fazer qualquer coisa de especial, como pagar mais cinquenta por cento sobre o preço do selo e escrever no envelope que a carta é de correio azul, como o sangue. Mas, pergunta José Pedro Gomes, se o carteiro vai a correr levar as cartas de correio azul logo no dia seguinte, porque razão não leva as outras também? Aí percebemos, mais uma vez, o grande engodo desnecessário do correio azul, pois todos nós nos lembramos, quando escrevíamos cartas, que a correspondência depositada no correio era invariavelmente entregue no máximo dois dias depois. Este foi o mote que deu início ao espectáculo de José Pedro Gomes Coçar Onde é Preciso, com textos da sua autoria, organizados por Sónia Aragão, onde o actor está cerca de 90 minutos sem rede a cumprir na íntegra a função crítica do humorista. Ninguém escapa, desde o homem mais humilde até aos governantes e aos detentores de cargos mais influentes porque, segundo o actor, “A javardice é democrata”. Depois de um momento difícil na sua vida pessoal, que o seu público acompanhou com alguma apreensão, José Pedro Gomes voltou em forma com aquela capacidade única de brincar até com a sua própria doença e com a consciência da morte. Mas o que irrita mais o actor, e talvez à maioria dos portugueses, é aquele Chico-espertismo à portuguesa, que faz tudo à base de esquemas e de “negócios marados”. José Pedro Gomes, é sabido, nunca teve muita paciência para lidar com a hipocrisia ou com a facilidade com que alguns governantes brincam com o nosso dinheiro, com a nossa vida. Neste espectáculo essa indignação é elevada ao extremo, ajudando-nos a perceber que não podemos continuar a dizer, subservientemente, “desculpe lá” por me mostrar indignado, mas eu gostaria que o meu país fosse governado por pessoas competentes. Sem papas na língua, aponta aquelas pequeninas coisas que vão invadindo o nosso quotidiano e contribuem para o nosso mal-estar geral, como a suposta abertura fácil dos pacotes de leite. E nós pensamos, olha, afinal, não sou só eu que não consigo abrir à primeira um pacote com as novíssimas aberturas fáceis! E quando damos por nós, a sala inteira está a rir porque se reconhece naquela dificuldade de abrir um pacote que supostamente tem uma abertura fácil. Assim como percebemos que não somos os únicos a perder-nos numa localidade onde aparece a temível tabuleta “desvio”. É certo e sabido que o desvio nos leva para o centro da localidade e depois nunca mais nos indica nada porque “toda a gente sabe que para sair da localidade tem de se virar na segunda à direita.” Mas, tal como José Pedro Gomes, também nós já estivemos em países onde não é assim, e é possível uma pessoa não se perder nas localidades, e até em grandes cidades europeias. Corrosivo quanto baste quanto aos administradores da Caixa Geral de Depósitos, José Pedro Gomes é o arauto do sensus communis, na medida em que dá voz à nossa inquietação e ao nosso mal-estar. Realmente, para quê ir de férias durante uma semana para um destino exótico, quando o tal destino exótico está repleto de compatriotas à procura do mesmo exotismo que nós, quando os ressorts nos brindam com comida very tipical de origem mais que duvidosa, e temos de passar o tempo em excursões onde os tocadores repentistas nos azucrinam a boa disposição e os sentidos? Depois, quando voltamos, estamos extenuados, sem dinheiro, cheios de inutilidades e sem o sorriso apalermado que nos iluminava o rosto quando estávamos a fazer as malas. Depois temos de passar as outras três semanas muito quietinhos para não gastarmos aquilo que já não temos.
José Pedro Gomes vai construindo a autêntica cumplicidade com o público - aquela que só alguns actores têm depois de ultrapassado o deslumbramento de se ver uma cara conhecida da televisão – ao mesmo tempo que constrói uma conversa como se estivesse perante um amigo. Esse amigo íntimo a quem abrimos as portas da nossa casa e partilhamos o descontentamento que temos pelo estado da nação. E a conversa discorre fluida, porque há tanto para dizer! Desde o pseudo milagroso choque tecnológico até à dificuldade do relacionamento entre um homem e uma mulher, tudo passa pelo crivo de José Pedro Gomes. E qual será o preço certo para se corromper um funcionário das finanças? Ou um agente para não ver o descarregamento de material ilícito? Sim porque o preço de uma torradeira, basta ir à loja para o ver. Agora o preço certo para os jeitosos se manobrarem bem na vida, é que todos nós devíamos ter acesso. Sim, porque como José Pedro Gomes diz, a javardice é democrata e agora isto só lá ia se alguém se dispusesse a pôr o país todo a zeros. Partirmos do zero, sem ligarmos ao passado para ver se conseguíamos começar de novo sem os esquemas necessários à sobrevivência. E sem o tal irritante “desculpe lá…” com se estivéssemos a pedir desculpa ao mundo por existir e por termos razão. Nem a Mona Lisa faltou, ajudando o actor na difícil tarefa de compreensão da personalidade feminina. Aqui, devemos dizer que há mesmo uma falta na compreensão na personalidade feminina, pois não devemos chamar a atenção só às senhoras da sala para a manutenção da sensualidade numa relação a dois. Mas isso levava-nos a um outro espectáculo de 90 minutos. Neste espectáculo o cenário é formado por três placards aparentemente simples com folhas brancas onde se pode desenhar. Ao longo do desempenho do actor o cenário revela-se engenhosamente complexo, com truques de encaixe que nos permite ver mais do que um simples bloco-notas onde é possível anotar o escárnio.
Este é o tipo de trabalho em que o público ri facilmente de um humor inteligente, próximo do formato sant-up commedy mas longe dos clichés e lugares comuns visto nesse formato de riso fácil. O público que esgotou as duas sessões do auditório da Fundação Pedro Ruivo deu a José Pedro Gomes os parabéns pela inteligência, pelo talento e pela forma digna como foi tratado: assumindo que o público é inteligente e que é capaz de rir com um humor sobre o estado da nação.

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