Thursday, August 16, 2007

O peso do passado


E se de repente chega no correio uma caixa que julgámos perdida há dez anos atrás? Que repercussões terá para a nossa vida? Dez anos serão o bastante para modificar a vida de uma pessoa? Estas foram algumas das questões que o grupo Al-Masrah se propôs apresentar através do texto de Gustavo Ott. A Tua Ternura Molotov, com encenação de Isolda Ruiz Barrios. Em cena até dia 10 de Dezembro.
A dramaturgia Sul-Americana está aos poucos a ser descoberta pelos grupos de teatro europeu, ansiosos de lufadas de ar fresco. O texto de Gustavo Ott A Tua Ternura Molotov, traduzido por Luciano Bravo, com dramaturgia de José Louro foi o pretexto para Pedro Ramos e Susana Nunes, sob a direcção de Isolda Ruiz Barrios, apresentarem um espectáculo politicamente incorrecto que diverte ao mesmo tempo que obriga a reflectir. Um casal na casa dos 30 anos, instalado na vida, com profissões confortáveis apresenta-se em cena diante de uma chaise-longue e de um candeeiro de design inovador. A casa é espaçosa e tem os apetrechos arquetípicos de um casal de classe média alta. Anseiam por um filho e lutam desesperadamente para o conceber como deve ser. Numa das muitas sessões preparadas, com direito a termómetro para ver se a cópula tem o calor necessário para se gerar um macho, o casal é interrompido. O passado dela é entregue sem pré-aviso dentro de uma caixa. Um passado com a distância de dez anos. A perturbação ao desvendar o conteúdo do saco vai subindo de tom até que se encontra uma máquina fotográfica reveladora de verdades incómodas. Tudo o que se passa no palco é apresentado a uma velocidade alucinante por Pedro Ramos e Susana Nunes, que não deixam cair a emoção, a dicção, a verdade.
O texto põe o dedo na ferida da má consciência dos valores judaico-cristãos, aparentemente humanistas e tolerantes, quando confrontados com o islamismo ou a ameaça terrorista. A velocidade com que Susana Nunes muda de registo é apanágio de uma verdadeira actriz. Ela mente, manipula, vitimiza-se e consegue convencer o outro e obter a aceitação do seu passado. A redenção dá lugar ao cinismo e na cena final a vida continua fútil como anteriormente, com a maledicência habitual e uma passagem pela vida onde tudo é encarado como se os seus protagonistas estivessem constantemente numa pista de dança. Será que quando o amor é sólido sobrevive às mais atrozes revelações? Ou será que é a convenção social que não deixa que haja alterações significativas dentro do núcleo familiar? Será que o passado compromete? E nós? Será que nós nos modificamos passados dez anos? Esta comédia negra diz-nos que por um lado, sim. Há um amadurecimento, um olhar mais abrangente sobre a realidade. Mas por outro lado transformamos a ingenuidade em cinismo refinado, que é a substância que sustenta a vida do homem contemporâneo ocidental. Isolda Barrios, num registo realista, conseguiu que os actores passassem uma mensagem simbólica muito forte; a má consciência ocidental perante os povos desfavorecidos implica a aceitação tácita e hipócrita de comportamentos com os quais não nos sentimos identificados.
A luz poderia estar mais apurada ao princípio, trabalhando mais de perto com os estados de espírito, mas depois da festa o candeeiro de sala deu à cena a ambiência correcta. As cenas de sexo são divertidas sem deixarem de ser ousadas. A cumplicidade entre os dois actores permite a ilusão de uma apropriação muito especial do corpo do outro.
É bom sabermos que existe no Algarve uma companhia de teatro capaz de afastar as teias bafientas do correcto, mostrando uma maneira descomprometida mas séria de fazer teatro. Um notável espectáculo sustentado, não só por um excelente texto, mas sobretudo por dois bons actores. A não perder em Tavira, no espaço da Corredoura, nos próximos dias 7, 8 e 9 de Dezembro às 21h30. Domingo, dia 10, o espectáculo será apresentado às 18h00.

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