Thursday, August 16, 2007

O caos infecundo


O Teatro Praga foi recebido novamente pelo Centro de Artes Performativas do Algarve, desta vez com a produção “Aghata Christie”. Um exercício que podia ter sido bem conseguido se os actores não se tivessem esquecido de acabar na altura certa.
João Mota, um dos grandes mestres do Teatro contemporâneo, diz frequentemente nas suas formações: “É preciso que o actor saiba acabar!” Esta sábia máxima condensa o que não aconteceu com “Aghata Christie”, a última prestação do Teatro Praga, trazida a Faro pelo CAPa nos dias 15 e 16 de Julho.
Depois de “Private Lives”, que tinha sido no ano passado a lufada de ar fresco de que o teatro precisava, o Teatro Praga apresentou um trabalho desequilibrado que excedeu o tempo razoável.
Começando por uma original e bem conseguida apresentação de Ten Little Niggers, o Teatro Praga divertiu e surpreendeu o espectador, demarcando-se da linha alternativa das suas últimas produções. Dez figuras espectrais, formando uma fila com o respectivo nome por baixo, como se fossem suspeitos numa sessão de identificação, interpretam o texto do romance policial, integrando para a sua personagem quer as réplicas, quer as didascálias. O texto saiu escorreito, fluido, e com algum humor, indo buscar reminiscências ao teatro radiofónico. Havia uma estrutura algo daimónica entre o próprio actor e a personagem que interpretavam, o que sugeria um jogo bastante interessante ao espectador. Limpo, com a clareza do apolíneo, fomos vendo os dez meninos negros irem desaparecendo um a um, até que no fim, envolto num denso nevoeiro, o culpado nos traz a desocultação do mistério. Bonito e surpreendente, vindo de uma companhia como o Teatro Praga. Uma legenda a passar num painel electrónico marca a mudança do cosmos para o caos e em três tempos os actores transformam o espaço vazio da caixa negra num bric-a-brac com tantos significados que se esvazia de sentido. Esta mudança radical na estética do espectáculo, como se estivéssemos a matar Apolo, recuperando Diónisos da prisão do formalismo foi violenta mas interessante, pondo em cena uma pretensa crítica ao olhar ingénuo do espectador versus o olhar do crítico que explora o espectáculo para além da meta interpretação da sua análise. A desarrumação aparente, os figurinos grotescos, a informação excessiva, quer escrita no quadro preto, quer a passar no painel electrónico suspenso, que nos textos dos actores, quer nos sinais de cena, esvaziaram-na de sentido propositadamente. Uma crítica não muito original mas eficaz contra os pretensos intelectualismos de um significado oculto por detrás de cada gesto, de cada objecto posto em palco. Um exercício em que, assumindo uma certa estética kitch se expõe os labirintos tortuosos do cérebro quando se tentam ligar as pontas num romance policial. Há um par de personagens que personifica os pares conceptuais de opostos que se atraem mas nunca se podem agregar. Eros e Thanatos, que se vão transformando nas suas múltiplas variáveis como Deus e Natureza, Espartanos e Troianos, pretérito perfeito e pretérito mais que perfeito ou simplesmente cão grande e cão pequeno. Todos são variáveis do impulso de vida que se opõe ao desejo de destruição. Até mesmo Derrida e Foucault fazem parte dessa oposição conceptual para os mais literatos. Interessante e eficaz, como exercício de volt-face surpreendente. Mas tudo o que se começa tem de se acabar, e acabar na altura considerada justa. A partir do momento em que a actriz supostamente despe a personagem e vem fazer mais um monólogo de teatro dentro do teatro o espectáculo perdeu todo o sentido. Mesmo a metáfora teatral de se despir para ver se o seu discurso causava alguma impressão no público não foi para além da pura exibição da nudez de uma grávida bonita. A partir desse momento o espectáculo entrou em declínio e não conseguiu mais elevar-se até ao ponto catártico que tinha conseguido atingir. Não se sabe muito bem quanto tempo levou o espectáculo até ao final, mas aqueles fastidiosos minutos lembravam a todo o instante ao público o desconforto dos seus assentos, levando-nos mais uma vez a dar razão a Peter Brook quando nos diz frontalmente que o diabo é mesmo o aborrecimento. No final todo o trabalho que se tinha construído na primeira e na segunda partes tinha ficado destruído pela insistência numa estética saturada de sinais. Não há mal nenhum em misturar a Medeia com um apresentador de programas cadente. Não, quando faz sentido no que podemos chamar a teoria dos sinais dentro da unidade de uma estética. Neste caso é difícil descortinar-lhe o sentido. O que tem a actriz que evidencia o estilo whith trash a ver com a cantora de baladas pop, e por sua vez com o apresentador de programas televisivos ao gosto popular? Talvez haja sentido na rapariga que muda incessantemente de roupa à procura da sua própria identidade, fragmentando-a, como simbolicamente a escritora faz quando cria as suas personagens, mas recuperando-a como Agatha, no final. Talvez até o homem amarrado faça sentido, pagando por um crime que cometeu, se acreditarmos numa justiça de crime e castigo. Se acreditarmos que a morte não é o fim. Podemos reportar-nos a Lynch e a Twin Peacks, lembrando-nos que a verdadeira história com todos os seus absurdos começou depois da morte de Laura Palmer. Mas nem todo o caos é criador. Este revelou-se estéril e fastidioso porque apontou para referências que só alguns apreendem. Para quê trazer Derrida, Foucault, Aristóteles, Valéry, Freud, para o caos como se despejássemos o conteúdo da nossa casa todo num saco, baralhássemos e o espalhássemos pela sala? Para o espectador menos letrado se sentir desconfortável perante a imensidão de referências? Para os actores se sentirem muito inteligentes? Private jokes, para o público em geral, deveria ser este o subtítulo do espectáculo do Teatro Praga.
Intencional ou não, este espectáculo propositadamente sujo depois da descoberta do criminoso, indicia um pretenciosismo balofo de quem, ao querer criticar o pseudo intelectualismo cai inevitavelmente nele. O hábito tenebroso de falar, escrever em inglês excedeu o razoável. Como muito para além do razoável, foi o ritmo na totalidade, parecendo um exercício de auto comprazimento resultante de uma oficina de formação. Na realidade, como asseguram no programa, todos fazem o espectáculo. Mas o espectador não pode ser olhado como uma entidade de infinita paciência que apreende a essência num interminável tempo de expurgação.
Bons actores, boas ideias, um excelente ponto de partida. Um desastre na gestão do ritmo do espectáculo. Da próxima vez, ao contrário do que aconteceu com este espectáculo, irá certamente haver uma hesitação na escolha, quando o Teatro Praga estiver agendado no Algarve com outro espectáculo em simultâneo.

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