O grupo A Comuna, Teatro de Pesquisa, trouxe ao Teatro Municipal de Faro o espectáculo A Cabra ou Quem é a Sílvia, de Edward Albee, encenado por Álvaro Correia. Um texto chocante que marca o encontro com a tragédia contemporânea.
Edward Albee escreveu a sua primeira peça de teatro aos 11 anos. Adoptado por um casal de actores, aprendeu nas digressões que fazia com os seus pais a matéria de que se faz a escrita para teatro. Por isso a linguagem de Albee é tão fluida, tão tocante, tão verdadeira. Peças como Quem tem Medo de Virgínia Wolf ou Zoo Story mudaram a paisagem do moderno teatro americano, tendo merecido mesmo o prémio Pulitzer pela criação de três textos com Delicate Balance (1966), em que descreve uma família convencional que sofre uma reviravolta quando é invadida por bons amigos que vêm em fuga do seu próprio lar por um medo inexplicável; com Seascape (1975), na qual duas das quatro personagens são enormes criaturas reptilianas que emergem do mar; e ainda com Three Tall Women (1991), obra que reflecte a crítica que lhe vinha sendo feita desde os anos 80. A par de algumas opiniões que defendiam que o teste do tempo provaria serem as suas últimas obras as melhores, o público considerava-o tão desinteressado no teatro comercial que havia chegado ao extremo de preterir a comunicação com a audiência, preferindo falar de si próprio em linguagem cifrada.
Contrariando aquilo que se convencionou chamar The American way of Life, Albee põe o dedo nas feridas mais profundas incomodando um optimismo balofo e vazio de sentido crítico. Quatro décadas depois de Quem tem Medo de Virgínia Wolf, Albee investe mais uma vez na recriação da Tragédia Aristotélica. A sua obra mais conhecida revelou-se como um dos primeiros sucessos populares a articular as correntes subterrâneas de insatisfação e de mal-estar nos Estados Unidos. Analisava e criticava as instituições que os norte-americanos mais respeitavam: a família, o casamento e o sucesso, e sugeria que haviam sido criadas em grande parte para fugir à realidade. Contrapunha-lhes a corrupção do "Sonho Americano", a esterilidade, a incapacidade de diálogo, a violência, a vida estereotipada. Segundo Aristóteles, “a tragédia é a imitação de uma acção séria e completa; ela suscita a piedade e o terror e, através deles, efectua uma verdadeira purgação desses dois tipos de sentimentos”. Com A Cabra ou Quem é a Sílvia Albee provoca um movimento a um tempo de identificação e afastamento. Identificação com um drama familiar que põe em causa o equilíbrio. Afastamento pelo horror que a situação nos desperta.
Este é talvez dos textos contemporâneos que mais se aproximam do sentido de Tragédia aristotélica. Podemos questionar-nos sobre o os temas que nos podem chocar hoje em dia. Longe de um Édipo atraiçoado pelo seu destino ou de Orestes, matricida sucumbido ao veneno de uma serpente Martin confronta-nos com a natureza do Amor. Qual Europa, perdidamente apaixonada pelos olhos do touro branco, Martin apaixona-se ternamente, incontrolavelmente por uma cabra.
A encenação de Álvaro Correia assenta na lindíssima cenografia de Marta Silva, que suporta a acção sobre um estrado de madeira onde se podem ver os alicerces. O interior da casa de um arquitecto premiado é apresentado com um certo requinte sóbrio, espelho da harmonia nela vivida. O desenho de luz de Paulo Graça intensifica os pormenores da tragédia com apontamentos de extrema beleza. Esta “entourage” acolhe quatro actores de grande nível: Carlos Paulo, João Tempera, Victor Soares e Cucha Carvalheiro. O casal, protagonizado por Carlos Paulo e Cucha Carvalheiro sabem transmitir a grande empatia que emana de dentro de um casal que conseguiu viver em harmonia durante 20 anos. No momento da revelação e do choque perante a “epifania” denunciada, Cucha Carvalheiro destrói o seu universo de aconchego e bem-estar com a verdade de uma personagem trágica. Vítor Soares, interpretando Ross, é a personagem catalisadora que provoca a revelação perturbadora. Mais histriónico que as outras personagens, Soares cumpre o seu papel com a o nível de actuação adequado. O filho Billy, interpretado por João Tempera, eleva o seu estigma homossexual à categoria de normal, face à revelada zoofilia do pai.
As personagens estão na medida certa para provocarem a teorizada catarse aristotélica. Apiedamo-nos das personagens e tememos por nós, num complexo movimento interior que permite apreciar formas horríveis. Voltando a Aristóteles, na Poética é dito que nós contemplamos com prazer as imagens mais exactas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância, por exemplo, as representações de animais ferozes e de cadáveres”. Porque há uma distância incomparável entre a coisa e a imitação da coisa. Mas na encenação de Álvaro Correia a imitação torna-se verosimilhança. Por isso consegue incomodar. Porque nos transmite o mal-estar que está invisível e ataca a qualquer momento no meio de nós.
O final rompe o pressuposto do teatro trágico, trazendo para a cena o obsceno, ou seja, o cadáver ensanguentado, morto pelas próprias mãos da mulher atraiçoada. Na miríade de sentimentos que se gerou perante aquela imagem, o horror de Martin, a apaziguação gerada pela vingança de Stevie, o estupor de Ross e o sofrimento de Billy, gerou-se o sentimento catártico que permitiu o público respirar fundo no final. A Cabra foi um texto provocador de Albee que Álvaro Correia transformou num espectáculo inquietante de horror e beleza.
Mais que nos apropriarmos de uma linguagem que perdeu o sentido na imensidão de tempo que nos distanciam da Grécia de Péricles, o que nos faz ainda inquietar é esta tragédia retirada acomodação das nossas vidas. Tal como a tragédia ática, tem a duração de um dia. Um coro nas mudanças de cena. Uma personagem que foi assaltada por um destino trágico sem qualquer possibilidade de fuga. Esse destino trágico arrasta com ele as outras personagens para uma outra visão da realidade. Como Stevie dizia: ”eu queria não ter acordado hoje. Mas como acordei, as coisas nunca mais irão ser as mesmas.” As palavras, descritivas da realidade, mudam-na, sendo elas próprias fazedoras da realidades. Dizer é fazer, segundo o filósofo Austin. Dizer é fazer numa tragédia porque modifica o espectador, que nunca mais será o mesmo depois de ter visto este espectáculo.
Edward Albee escreveu a sua primeira peça de teatro aos 11 anos. Adoptado por um casal de actores, aprendeu nas digressões que fazia com os seus pais a matéria de que se faz a escrita para teatro. Por isso a linguagem de Albee é tão fluida, tão tocante, tão verdadeira. Peças como Quem tem Medo de Virgínia Wolf ou Zoo Story mudaram a paisagem do moderno teatro americano, tendo merecido mesmo o prémio Pulitzer pela criação de três textos com Delicate Balance (1966), em que descreve uma família convencional que sofre uma reviravolta quando é invadida por bons amigos que vêm em fuga do seu próprio lar por um medo inexplicável; com Seascape (1975), na qual duas das quatro personagens são enormes criaturas reptilianas que emergem do mar; e ainda com Three Tall Women (1991), obra que reflecte a crítica que lhe vinha sendo feita desde os anos 80. A par de algumas opiniões que defendiam que o teste do tempo provaria serem as suas últimas obras as melhores, o público considerava-o tão desinteressado no teatro comercial que havia chegado ao extremo de preterir a comunicação com a audiência, preferindo falar de si próprio em linguagem cifrada.
Contrariando aquilo que se convencionou chamar The American way of Life, Albee põe o dedo nas feridas mais profundas incomodando um optimismo balofo e vazio de sentido crítico. Quatro décadas depois de Quem tem Medo de Virgínia Wolf, Albee investe mais uma vez na recriação da Tragédia Aristotélica. A sua obra mais conhecida revelou-se como um dos primeiros sucessos populares a articular as correntes subterrâneas de insatisfação e de mal-estar nos Estados Unidos. Analisava e criticava as instituições que os norte-americanos mais respeitavam: a família, o casamento e o sucesso, e sugeria que haviam sido criadas em grande parte para fugir à realidade. Contrapunha-lhes a corrupção do "Sonho Americano", a esterilidade, a incapacidade de diálogo, a violência, a vida estereotipada. Segundo Aristóteles, “a tragédia é a imitação de uma acção séria e completa; ela suscita a piedade e o terror e, através deles, efectua uma verdadeira purgação desses dois tipos de sentimentos”. Com A Cabra ou Quem é a Sílvia Albee provoca um movimento a um tempo de identificação e afastamento. Identificação com um drama familiar que põe em causa o equilíbrio. Afastamento pelo horror que a situação nos desperta.
Este é talvez dos textos contemporâneos que mais se aproximam do sentido de Tragédia aristotélica. Podemos questionar-nos sobre o os temas que nos podem chocar hoje em dia. Longe de um Édipo atraiçoado pelo seu destino ou de Orestes, matricida sucumbido ao veneno de uma serpente Martin confronta-nos com a natureza do Amor. Qual Europa, perdidamente apaixonada pelos olhos do touro branco, Martin apaixona-se ternamente, incontrolavelmente por uma cabra.
A encenação de Álvaro Correia assenta na lindíssima cenografia de Marta Silva, que suporta a acção sobre um estrado de madeira onde se podem ver os alicerces. O interior da casa de um arquitecto premiado é apresentado com um certo requinte sóbrio, espelho da harmonia nela vivida. O desenho de luz de Paulo Graça intensifica os pormenores da tragédia com apontamentos de extrema beleza. Esta “entourage” acolhe quatro actores de grande nível: Carlos Paulo, João Tempera, Victor Soares e Cucha Carvalheiro. O casal, protagonizado por Carlos Paulo e Cucha Carvalheiro sabem transmitir a grande empatia que emana de dentro de um casal que conseguiu viver em harmonia durante 20 anos. No momento da revelação e do choque perante a “epifania” denunciada, Cucha Carvalheiro destrói o seu universo de aconchego e bem-estar com a verdade de uma personagem trágica. Vítor Soares, interpretando Ross, é a personagem catalisadora que provoca a revelação perturbadora. Mais histriónico que as outras personagens, Soares cumpre o seu papel com a o nível de actuação adequado. O filho Billy, interpretado por João Tempera, eleva o seu estigma homossexual à categoria de normal, face à revelada zoofilia do pai.
As personagens estão na medida certa para provocarem a teorizada catarse aristotélica. Apiedamo-nos das personagens e tememos por nós, num complexo movimento interior que permite apreciar formas horríveis. Voltando a Aristóteles, na Poética é dito que nós contemplamos com prazer as imagens mais exactas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância, por exemplo, as representações de animais ferozes e de cadáveres”. Porque há uma distância incomparável entre a coisa e a imitação da coisa. Mas na encenação de Álvaro Correia a imitação torna-se verosimilhança. Por isso consegue incomodar. Porque nos transmite o mal-estar que está invisível e ataca a qualquer momento no meio de nós.
O final rompe o pressuposto do teatro trágico, trazendo para a cena o obsceno, ou seja, o cadáver ensanguentado, morto pelas próprias mãos da mulher atraiçoada. Na miríade de sentimentos que se gerou perante aquela imagem, o horror de Martin, a apaziguação gerada pela vingança de Stevie, o estupor de Ross e o sofrimento de Billy, gerou-se o sentimento catártico que permitiu o público respirar fundo no final. A Cabra foi um texto provocador de Albee que Álvaro Correia transformou num espectáculo inquietante de horror e beleza.
Mais que nos apropriarmos de uma linguagem que perdeu o sentido na imensidão de tempo que nos distanciam da Grécia de Péricles, o que nos faz ainda inquietar é esta tragédia retirada acomodação das nossas vidas. Tal como a tragédia ática, tem a duração de um dia. Um coro nas mudanças de cena. Uma personagem que foi assaltada por um destino trágico sem qualquer possibilidade de fuga. Esse destino trágico arrasta com ele as outras personagens para uma outra visão da realidade. Como Stevie dizia: ”eu queria não ter acordado hoje. Mas como acordei, as coisas nunca mais irão ser as mesmas.” As palavras, descritivas da realidade, mudam-na, sendo elas próprias fazedoras da realidades. Dizer é fazer, segundo o filósofo Austin. Dizer é fazer numa tragédia porque modifica o espectador, que nunca mais será o mesmo depois de ter visto este espectáculo.
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