Thursday, August 16, 2007

A vida continua...


Mesmo decrépita, a vida continua. Corra mal ou corra bem, a vida continua. Esta, para quem não se tinha ainda apercebido, é a mensagem exposta no espectáculo do Teatro da Garagem levado a cena no Centro de Artes Performativas do Algarve nos dias 8 e 9 de Julho de 2005
A Vida Continua – Tragicomédia familiar em 5 actos. Esta é a breve anunciação ao texto de Carlos J. Pessoa, que originou o espectáculo do Teatro da Garagem, estreado em 15 de Junho e com uma breve digressão anunciada em Faro e na Guarda em Setembro próximo. É sempre interessante ver o que é os novos valores da dramaturgia portuguesa nos oferecem ao nível dos textos. E o que o texto nos sugere é uma torrente de personagens de diferentes tempos, diferentes ritmos, diferentes estados. Há um prólogo apresentando os anciãos originários dos Guerra, com a mulher a destacar-se pelo seu nome próprio de pianista. Vê-se que não quer perder a sua personalidade, utilizando o nome herdado do marido. Este casal vagueia como uma sombra entre os outros, impondo a sua presença num mundo desconcertado e cheio de memórias. Os cruzamentos são constantes, como se se tratasse de uma escrita automática em que o fio condutor é constantemente desviado para onde a lógica tem uma forma muito própria de se desenvolver. A articulação entre as três gerações faz-se, como na generalidade das famílias, através de artifícios e de manhas e artimanhas que usam sem qualquer pudor para se enganarem, orgulhando-se do seu feito. O pai que quer que a filha seja qualquer coisa de absurdo, tal como é absurdo a imposição dessa vontade. A filha que anseia fervorosamente matar o pai por este lhe matar os sonhos. O filho que põe o dedo na ferida da mãe, apontando o pânico que esta tem do julgamento do seu público. O pai que tenta enganar o filho porque pensa que ele é um tanso, o filho que engana o pai fazendo-se passar por tanso não o sendo e o padre que confia na vida e recorda que esta continua, apesar de tudo. Visto através de uma perspectiva muito linear, o texto está longe de ser brilhante, insistindo nos lugares comuns mais incomodativos. Quando vemos o texto transposto para o espectáculo, a primeira ideia que nos é sugerida é a de decrepitude. Tal como as histórias de famílias, a páginas tantas acabam por se tornarem decrépitas, povoadas de fantasmas, oportunistas e raparigas infelizes, repetidamente violadas no estrangeiro enquanto andavam valorosamente a lutar pela vida. Tudo emerso em água, como se a perspectiva do desaparecimento total fosse eminente. Tudo frágil, a apodrecer, como as relações entre as pessoas, como o tempo que vai passando imperturbável, apesar da vida continuar.
Esta decrepitude tem, contudo, algumas imagens bonitas, criadas sobretudo nas aparições de Cristina Carvalhal, representando talvez a personagem mais decrépita e quiçá, mais lúcida, de toda a história. O som do mini realejo ajuda o espectador a encontrar a tal música que tem de surgir de dentro para que possa ser ouvida. Um jogo de espelhos com o passado, escrito nas cómodas, mesas de cabeceiras, camiseiros e toucadores empilhados com as confusas gavetas da memória parecendo trocadas. Um cenário sujo, contendo demasiada informação, redundante com o texto e com a representação.
Ana Palma está soberba nos seus dois papéis, transfigurando-se num jogo de corpo e de atitude, ajudados pelo cabelo, muito convincente. O padre também consegue manter a sua actuação discreta mas rigorosa do princípio ao fim, sem nunca nos surpreender pela negativa. Já os actores que fazem de pai e de filho, talvez pela natureza dos seus textos, perdem-se num excesso de representação inexplicável, que não roça a convicção mas sim o absurdo.
De acordo com o sistema de sinais este espectáculo é riquíssimo, correndo o espectador o risco de se perder no meio de tanto simbolismo. Provavelmente o simples facto dos actores arrastarem os seus pés pela água já continha em si um símbolo suficientemente forte para passar todos os sinais que o autor queria fazer passar na mensagem dramatúrgica. O facto da cena se ter alagado também de móveis empilhados, para além de lhe ter retirado sobriedade torna a leitura do espectáculo confusa. A música de Daniel Cervantes está adequada ao espectáculo, criando momentos de rara beleza. O final, com a cristaleira, simbolizando a fragilidade da vida humana, rodopiando, deixando ver no seu verso as gavetas confusas da memória, está muito bem conseguido, tendo contribuído para que o espectador esquecesse por momentos alguns apontamentos menos conseguidos, como alguns monólogos que primaram apenas pela falta de ritmo que imprimiram ao espectáculo.
Comparando com “Os Donos dos Cães” este espectáculo deixa muito a desejar, notando-se contudo uma linha de continuidade marcando o traço do encenador. Ficamos à espera de melhores dias, certos de que “A vida Continua”.

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