Thursday, August 16, 2007

O descanso do soldado


Depois de uma digressão por vários concelhos do Algarve com a produção História do Soldado a ACTA e a Orquestra do Algarve fazem uma merecida pausa. Da longa viagem do soldado ficam as memórias contadas pelo narrador. Um boa aposta na revitalização das sinergias de ambas as estruturas que deverá continuar a ser explorada no futuro.
Quem já não vendeu a alma ao diabo em troca de uma ilusão? No fundo é esta a questão que domina o enredo do texto do suísso Charles-Ferdinand Ramuz. Göethe não fez mais do que teorizar de forma excelente o mito que, de forma recorrente, é recontado, como nesta História do Soldado.
O espectáculo começa com um vagabundo, um velho soldado que começa a contar a sua história. A história de uma inocência perdida que é, afinal, a história de todos os soldados. Um velho mendigo, interpretado de forma muito convincente por Afonso Dias, que nos conta como chegou a ter muito, a troco daquilo que não podia dar: a sua integridade. Quantas vezes não vendemos nós a alma ao diabo a troco de um livro que, supostamente nos vai fazer mais felizes ou mais poderosos ou mais jovens?
A encenação de Paulo Matos transformou o registo de contadores de histórias nos largos das feiras num espectáculo complexo, com vários níveis de interpretação. Ajudado pela música intensa de Stravinsky, interpretada ao vivo pela Orquestra do Algarve, dirigida por Osvaldo Ferreira, Paulo Matos cria subtilizas no texto de Ramuz. Luís Miranda consegue transmitir a energia e a inocência de um jovem que vai de licença rever a mãe e a noiva, Luís Vicente não envergonha a sua genialidade quando interpreta as várias faces do diabo e Elisabete Martins irradia de felicidade quando dança adequadamente a coreografia de Evegueni Beliaev, representando a princesa, pronta a ser resgatada pelo soldado.
Nesta produção os actores foram muito apoiados pela luz requintada e precisa de Noé Amorim, pelos figurinos exuberantes de Esmeralda Bisnoca e pela cenografia onírica de Tó Quintas. Para além da música que faz parte integrante do espectáculo, dialogando com os actores. As várias faces do diabo acompanhavam Luís Vicente num figurino e num linguajar diferentes. A sua malvadez aliada à sedução inerente ao mal, traz consigo as memórias do nosso imaginário colectivo como a madrasta da Branca de Neve ou o Dragão em que se transforma a bruxa da Bela Adormecida. Esmeralda Bisoca soube brincar com todo esse imaginário, criando figurinos adaptado à loucura criadora de Luís Vicente. As vestes andrajosas do vagabundo contador também tinham um toque de originalidade que marca já a linha da figurinista. Apenas um erro de palmatória imperdoável numa companhia como a ACTA: as botas do vagabundo estavam completamente novas na sola, ostensivamente viradas para o público quando ele está a dormir entre os cartões.
A farda do soldado foi concebida de maneira a que o público visse naquele jovem o uniforme de uma qualquer guerra, de um qualquer estado, de uma qualquer consciência. Até os músicos da orquestra integraram o espectáculo vestindo figurinos que os colocavam adequadamente em cena. A própria cenografia foi buscar o espírito dos castelos encantados, coloridos, que se iluminam por dento e nos fazem sonhar com as princesas que o habitam ou temer os demónios que encerram.
Este espectáculo chama-nos a atenção para a volatilidade do nosso espírito, mesmo o mais honesto, que sucumbe ante a promessa de felicidade. O violino, alma do soldado, é dele separada em troca de um livro que lhe proporciona a felicidade fácil. Parábola da vida comum, na qual Luís Vicente e Luís Miranda jogam na perfeição o jogo dos enganos e das guerras, públicas ou privadas, que acontecem sem nenhuma razão aparente. Esta é a história dos soldados da vida que batalham pela sua felicidade e, mais cedo ou mais tarde, perdem a inocência. Essa perda, intensificada pela música de Stravinsky, tem a sua apoteose no final quando o diabo, de saltos altos e fato vermelho escarlate exibe em todo o seu esplendor a alma roubada. Um espectáculo muito equilibrado por parte dos actores. Da parte dos músicos, houve algum alheamento no decorrer da acção. Às vezes os músicos esquecem que quando estão em cena com actores têm eles próprios de ser também actores. Por isso é que vestem um figurino adaptado ao espectáculo. Quando os músicos falam entre si ou esperam pela sua vez de tocar com uma expressão de enfado no rosto estão a sujar o trabalho dos actores e do espectáculo em geral. Não basta serem os excelentes executantes, que são. O teatro é uma das artes mais difíceis porque exige, a par da técnica, um esforço de transfiguração. Tudo tem de estar em sintonia e, para estar no palco, tem de fazer sentido. Em muitos momentos do espectáculo alguns elementos da orquestra não faziam sentido porque não estavam em sintonia com o espectáculo. Um pormenor a pensar e a ter em conta nas formações internas se se apostar na manutenção desta fórmula da co-produção, aliando outras estruturas artísticas igualmente representativas para a região, como a Companhia de Dança do Algarve.
Paulo Matos conseguiu erguer um excelente espectáculo aproveitando as valências do elenco e da equipa de produção, indo ao encontro de vários públicos. Oxalá ele tenha gostado das terras mouras e sinta vontade de repetir a experiência.

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