Friday, August 17, 2007

Jovens artistas jovens

O CAPa é um dos 14 parceiros que torna possível em Portugal o Projecto “Jovens Artistas Jovens”. Este projecto já existe noutros países europeus e pretende apoiar os jovens artistas, ganhando também um conhecimento da sua situação real e integrando-os em estruturas (teatros, associações) a nível nacional.
Este projecto vem colmatar uma lacuna, pois pretende fazer um levantamento sobre os grupos de jovens criadores que querem oferecer o seu talento ao país. Através deste projecto, esses artistas poderão ultrapassar algumas dificuldades inerentes aos projectos de jovens que querem colocar os seus projectos na cena nacional.
O projecto “Jovens artistas jovens” é sensível à necessidade que os jovens têm relativamente a uma experiência artística que contemple aspectos de produção e de técnica, que lhes permitam, mais tarde, alcançar autonomia. Pretende-se, por isso, a possibilidade de realizar um trabalho no contexto de uma estrutura que funciona em moldes profissionais, que permitirá dotar os jovens artistas de conhecimentos e ferramentas que lhes podem ser úteis no momento de pensar novas criações.
As entidades organizadoras sentem que “muitas vezes, os jovens artistas trabalham sós e silenciosos. Pensamos que a possibilidade de encontros e discussões com artistas com uma experiência mais firmada e com um olhar diferente sobre a arte pode resultar no enriquecimento exponencial não só dos seus trabalhos, como deles próprios. São eles que ganham de um olhar renovado e mais maduro críticas, questões e estímulos que decerto não os deixarão imunes. (…) Se os jovens artistas permanecerem arredados do público, aquelas que constituem as suas grandes preocupações e as suas maiores apostas ficarão perdidas numa geração sem espelho artístico. ”
Por considerarem que o apoio aos artistas jovens é quase uma obrigação, no sentido em que as estruturas de teatros são veículos de encontro entre comunidades de público, de artistas, de discursos e de olhares, criaram a possibilidade de os artistas se afirmarem através de um concurso a nível nacional, com o intuito de oferecer a possibilidade de um acompanhamento gradual do trabalho artístico e ainda a sua produção. Este seria, assim, o objectivo último do projecto “Jovens Artistas Jovens”. Finalmente, numa tentativa de potenciar ao máximo esta iniciativa, pretende-se que o projecto português “Jovens Artistas Jovens” seja parceiro dos outros projectos congéneres na Europa, de modo a permitir a apresentação de trabalhos e a discussão de questões a nível internacional.
Lá e Cá foi um dos três projectos que ganhou a possibilidade de fazer uma residência artística no CAPa. Desenvolvido por duas jovens artistas, Catarina Vieira e Solange Freitas, estas criativas basearam-se num texto de António Lobo Antunes, Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo e construíram um espectáculo inovador e diferente, falado no feminino. As personagens são complexas, muito ricas de passado e sequiosas de comunicar, por estarem envoltas no silêncio, no esquecimento, num não-lugar familiar e social. «A única coisa que pretendo é que me deixem em paz sozinha comigo ou antes sozinha com isto que não sou eu e em que me tornei» Essa sede de comunicação torna o discurso tenso e ritmado, no qual a pontuação, omissa pela urgência de falar, é compensada pela expressividade e pela poesia. O espectáculo Lá e Cá assenta nesse princípio da incomunicabilidade. Uma mulher aparece sem rosto, com um saco de papel cobrindo-lhe a identidade. Outra mulher chega, igualmente sem identidade. Elegantes, os sapatos, como coturnos, elevam a figura sem rosto. As mulheres penteiam os cabelos que não se vêem sob um saco de papel que oculta o rosto. Dão ao saco uma outra identidade, quando desenham com baton uma outra boca e uns outros olhos.
Tentam “Não se querer enganar, não se deixar ler, não se tornar expressão, ser impassível, não mostrar a cara, esconder os olhos, não ver e não ser visto, filtrar a informação da alma, fingir-se de morto, não mostrar tudo, estar sempre a fugir, ter nove mil caras, fingir-se de morto, ver e não ser visto, ficar na sombra, ser igual ao outro para não ser o outro, não perder o pé ou a cabeça, não sair do mesmo sítio.”
As actrizes dominam o espaço, coberto com cartão, apesar de não o conseguirem ver. Uma delas tenta compor a imagem colocando brincos, mas o cartão começa a rasgar-se. A tentativa de compor o que está desfeito vem através da tentativa de colar o rosto com fita adesiva. A outra mulher fala e vai comendo o papel que lhe cobre o rosto. A identidade descobre-se a partir da palavra e o papel vai-se rasgando em pedaços cada vez mais pequenos, cobrindo o olhar. A relação do corpo com o espaço, construída com o apoio de Luca Aprea, é íntima e permite que o corpo se movimente de olhos fechados num espaço com obstáculos. A boca do corpo revela a fala das profundezas do sentimento de si, que engole o real de forma ampliada. Quando a palavra desoculta o rosto, um espelho devolve a imagem do objecto de conhecimento a si próprio. É comovente a cena em que a actriz se move, ostentando no rosto um espelho que devolve a imagem aos espectadores. Com o espelho, o sujeito pode efectivamente ter nove mil caras, fugindo de si próprio. Do espelho passa-se ao filtro e a uma das cenas mais bonitas do espectáculo. A meio da cena, sobre um balcão, estão dispostos lado a lado seis grandes jarros transparentes cheios de água. Seis infusas uterinas que permitem um olhar filtrado sobre a realidade. Com a luz belíssima de Wagner Borges, os rostos por detrás das infusas ficam deformados e estranhos, dando ao outro o reflexo de uma realidade que não é a sua. Segundo Lobo Antunes, “O inferno consiste em lembrarmo-nos a eternidade inteira”.
As conversas, o social, escondem-se atrás de uma capa de múltiplos rostos, alimentados por conversas fúteis. Quando o rosto se descobre e fita o outro, olhos nos olhos, a sintonia acontece e o corpo responde em simultâneo. O espectáculo acaba quando a cumplicidade é encontrada.
As referências à escrita profunda e complexa de Lobo Antunes tornaram-se evidentes ao longo de todo o espectáculo, que se impôs como uma bonita homenagem ao escritor.
Um espectáculo belíssimo que nos convida a aprofundar a leitura de Lobo Antunes, mas que, sobretudo, nos aguça a curiosidade sobre os projectos que os jovens criadores não podem deixar na gaveta.

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