Friday, August 17, 2007

Quando o espaço se abre ao corpo


Ana Borges dirigiu uma oficina de dança assente na relação do corpo com o espaço envolvente. O resultado foi o espectáculo Interferências_vol. 2 e surpreendeu o público. Um conceito a trabalhar, a insistir e a rever.
Insuspeitamente um espaço abriu-se aos corpos, revelando-lhes os seus segredos.
A oficina de pesquisa e criação coreográfica Interferências, dirigida por Ana Borges, com assistência de Isabel Souto, foi criada para o espaço do Palácio da Galeria, actual Museu Municipal de Tavira. Este espectáculo foi integrado no âmbito do 3º Festival Internacional de Teatro e Artes na Rua de Tavira “Cenas na Rua”.
Ana Borges tem feito incidir o seu trabalho sobre o cruzamento da dança com outros suportes artísticos para além da música como a pintura, a escultura, a literatura. Neste projecto Ana Borges debruçou-se sobre o conceito de arquitectura, ou seja, sobre a organização do homem no espaço. O espaço proposto para o trabalho foi o Palácio da Galeria que contém um universo de múltiplos espaços, nos quais o corpo pode inter agir. O espectador começa por se deparar com um pequeno espaço, exíguo, fechado por um vidro. Dentro desse vidro doze corpos amontoam-se e começam a evoluir, procurando o seu lugar. Há um encontro que é mais uma procura de identidade perante a diferença. Ao som do saxofone de Peter Bastiaan os corpos vão saindo, deixando três figuras femininas no pequeno cubículo, matriz do despertar dos corpos. Na parede oposta, também de vidro, outra figura feminina vai seguindo os movimentos destas três mulheres. Um eco que recebe as vibrações do espaço. As figuras exploram o espaço: caem, erguem-se, deslizam, evoluem ao som do saxofone. Saem por fim do espaço gerador e vão deixando marcas da sua passagem: pedras que indicam o caminho. No espaço seguinte, através de um vidro translúcido as silhuetas dos corpos desocultam-se, fazendo o espectador adivinhar a forma. Há uma interacção do corpo que se quer dar a conhecer com o elemento vidro. O corpo desaparece e os espectadores podem espreitar o que está na sala seguinte. Não existem corpos visíveis, apenas armários. A música cria uma ambiência estranha mas confortável. Subitamente dos armários surgem ruídos. Há portas que se abrem de onde surgem corpos. Primeiro fragmentos, depois o corpo, inteiro, sem filtros. Apresenta-se saindo do espaço exíguo e procura o seu espaço próprio, acompanhado da pedra, que acompanha a interacção do corpo consigo próprio.
Nesta sequência há uma relação com a ontologia platónica, na medida em que o reconhecimento do eu, através da música, leva ao desentorpecimento, à saída da caverna e à dificuldade de adaptação às várias fases do esclarecimento. Primeiro a cegueira da indiferenciação, depois uma primeira libertação em que só se consegue ver a sombra do objecto, depois o reflexo, neste caso as vibrações sonoras, e só depois o próprio objecto. Os espectadores saem para o pátio interior, acompanhando os corpos libertos. No espaço ao ar livre o corpo procura o seu redimensionamento. O corpo corre, o corpo relaciona-se com o espaço, com o outro, com o outro que é também espaço e ser. As potencialidades do espaço exterior foram aproveitadas e o espaço foi-se adaptando ao humano. As colunas, símbolo do poder falocêntrico devolviam ao corpo feminino o seu poder gerador. Um poder que permite o surgimento dos vários corpos femininos gerando novas relações com o espaço. O poder da criação. Dos objectos musicais são retiradas por Gonçalo Castro, Jorge Oliveira e Peter Bastiaan sons improvisados que vão matizando o movimento dos corpos de um colorido onde impera o contraste.
A certa altura todo o espaço vibra com os corpos presentes em cada esquina insuspeita. O espaço abre mais para um terraço amplo, onde os corpos podem correr, parar, agir em bloco ou individualmente, ser mais um ou o único. Neste espaço dá-se a libertação total do corpo como sujeito da vontade própria.
O final também pode ser visto como uma descida esotérica até às profundezas do ser. O público é conduzido a uma sala onde estão iluminados vestígios do passado transmitidos pelas pedras. Os corpos deitam-se sobre a luz emergente das pedras e reconhecem-se nelas. Há pedras mais recentes que retornam à água, como os corpos retornam à luz. O som provém de uma pequena caixinha de música que preenche o espaço com a sonoridade delicada, evocando as memórias da infância. Neste descida está visível o regresso ao útero materno no abraço à mãe Terra originária que sustenta o espaço e dá sentido ao ser.
No final o espaço abre-se e as personagens irrompem para o exterior. A imagem de um parto feliz.
Com Ana Paleta, Ângela Vargues, Cristina Felício, Cristina Mezquita, Inês Férin, Margarida Vargues, Maya Tacke, Ricardo Mendonça, Rosa dos Santos, Sandra Custódio, Sandra de Jesus e Sandra Terra, esta oficina de pesquisa e criação coreográfica marcou um momento único, solene, que dignificou o imponente Palácio da Galaria. O espaço abriu-se ao corpo e o corpo pôde, através do espaço, reencontrar a sua essência. Magnífico. E não se pode repetir?

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