Figueira Cid encenou o texto Regarde les femmes passer, de Yves Reynaud. O espectáculo daí resultante, Mulheres que passam, mostra o bom teatro que é possível fazer com poucos recursos mas com muito talento.
O olhar curioso sobre o espectáculo Mulheres que passam, de Yves Reynaud, com encenação de Figueira Cid, pelo grupo de teatro A bruxa, de Évora, começa quando nos entregam o bonito programa à entrada. Um programa pleno de bom gosto, com uma imagem de João Cutileiro na capa e a informação adequada para o espectador se ir ambientando à temática do espectáculo: a solidão de um homem e a dificuldade de encontrar alguém com quem possa viver, não por uma noite, mas para a vida.
O espaço cénico está imerso nos opostos branco e preto. O chão, os móveis, revestem-se todos de um xadrez geométrico e constante.
O espectáculo começa com a personagem principal a abrir o guarda-fatos, de onde surge. Fuma um cigarro enquanto descreve a sua vida banal de homem solitário. O efeito da luz cénica, acompanhando a variação de intensidade da luz do cigarro é muito bonito. O homem, Paul, interpretado pelo actor Celino Penderlico, sai do seu uterino esconderijo. Um esconderijo de si próprio, onde se sente protegido, sem ter de se expor perante o outro. O homem sai do seu guarda-fatos e depara-se consigo próprio, frente ao espelho. Escreve uma carta aos pais, informando-os da sua intenção de encontrar uma mulher com quem partilhar a vida. Os seus gestos quotidianos indicam a ansiedade de quem parte para a conquista de uma mulher: escolhe roupa, muda de roupa, engoma a roupa, sai de casa, volta a casa, veste o casaco, despe o casaco, arranja o cabelo, faz planos. O seu mobiliário reduz-se a uns bancos geométricos que se transformam em caixinhas de surpresas que se abrem mostrando os objectos do quotidiano, necessários a uma vida moderna. A tábua de engomar, o fogão, a cama, ao princípio ocultados, desocultam-se à medida que a personagem deles vai precisando, permanecendo em evidência mesmo de pois de terem sido utilizados. À medida que a ansiedade vai aumentando e a depressão vai tomando conta de Paul, o seu quotidiano vai-se tornando caótico.
A contracenar com o actor está a música, sempre presente no violino de Ângela Fortes. Os sons retirados do violino intensificam as emoções que o homem solitário vai desenvolvendo ao longo da sua busca. Há uma ambiência criada pela música de inspiração francesa que evoca a procura do romance e da sedução. No entanto, a abordagem que este homem faz às mulheres, assusta-as, pondo-as em fuga à primeira fala menos adequada. Paul observa os pombos no seu ritual de acasalamento e quer reproduzir todo aquele comportamento para o universo humano. Desajeitado, não consegue fazer devidamente a corte às mulheres que lhe parecem interessantes, sendo progressivamente rejeitado por todas elas.
A tensão adensa-se e Paul acaba por comemorar o seu trigésimo segundo aniversário sozinho. As mulheres não gostam sequer que Paul se aproxime das suas conversas, que gostariam de manter no seu íntimo. Paul começa a ter um comportamento disfuncional face à realidade. É incapaz de se levantar para ir trabalhar, é incapaz de encarar as pessoas felizes na rua, é incapaz se de ver a si próprio como um ser humano integrado. Falta-lhe o complemento. É despedido e começa a completa degradação da sua pessoa.
O peixe que guarda num aquário e que nada no seu espaço limitado começa também a sufocar pela falta inesperada do seu elemento vital, a água. Quase no último arquejo, Paul recolhe o peixe e devolve-o à vida. Foi um adiamento do inevitável. Depois de desempregado, fica ainda mais difícil encontrar uma companheira que o queira para partilhar os seus dias. Brinca com uma boneca insuflável mas aquilo que Paul procura é o carinho, o companheirismo que uma mulher lhe poderia dar. O desemprego vai implicar o corte de bens necessários como a luz. Paul ilumina-se à luz de velas e já nem se alimenta convenientemente. Tem medo de sair à rua, vivendo obcecado com o enfrentar de pessoas normais e enquadradas socialmente.
A pressão é demasiada e Paul decide reencontra-se com os outros de uma maneira trágica, atirando-se da sua janela, perdendo de vez o ânimo que o alimentava. No fim, as pernas de uma mulher passam na janela de Paul. Metáfora da sensualidade libertadora que conduziu Paul para fora de si próprio.
Mulheres que Passam é um espectáculo que toca o público. Um desenho de luz apuradíssimo, também da autoria de Figueira Cid, um suporte musical intenso que cria no espectador a empatia necessária para a compreensão do estado de alma da personagem, um actor que sabe transmitir verdade e a assinatura de Figueira Cid na encenação tornaram este espectáculo num momento de raro prazer para quem teve a possibilidade de a ele assistir. Um dos poucos momentos de intenso prazer estético encontrado nos últimos tempos. Só uma questão de pormenor: foi preciso deslocarmo-nos a Évora para podermos ter acesso a esta obra. Mas no fim de contas, o que são duas horas quando nos espera um momento de raro prazer executado por profissionais de excelência? Nada.
O olhar curioso sobre o espectáculo Mulheres que passam, de Yves Reynaud, com encenação de Figueira Cid, pelo grupo de teatro A bruxa, de Évora, começa quando nos entregam o bonito programa à entrada. Um programa pleno de bom gosto, com uma imagem de João Cutileiro na capa e a informação adequada para o espectador se ir ambientando à temática do espectáculo: a solidão de um homem e a dificuldade de encontrar alguém com quem possa viver, não por uma noite, mas para a vida.
O espaço cénico está imerso nos opostos branco e preto. O chão, os móveis, revestem-se todos de um xadrez geométrico e constante.
O espectáculo começa com a personagem principal a abrir o guarda-fatos, de onde surge. Fuma um cigarro enquanto descreve a sua vida banal de homem solitário. O efeito da luz cénica, acompanhando a variação de intensidade da luz do cigarro é muito bonito. O homem, Paul, interpretado pelo actor Celino Penderlico, sai do seu uterino esconderijo. Um esconderijo de si próprio, onde se sente protegido, sem ter de se expor perante o outro. O homem sai do seu guarda-fatos e depara-se consigo próprio, frente ao espelho. Escreve uma carta aos pais, informando-os da sua intenção de encontrar uma mulher com quem partilhar a vida. Os seus gestos quotidianos indicam a ansiedade de quem parte para a conquista de uma mulher: escolhe roupa, muda de roupa, engoma a roupa, sai de casa, volta a casa, veste o casaco, despe o casaco, arranja o cabelo, faz planos. O seu mobiliário reduz-se a uns bancos geométricos que se transformam em caixinhas de surpresas que se abrem mostrando os objectos do quotidiano, necessários a uma vida moderna. A tábua de engomar, o fogão, a cama, ao princípio ocultados, desocultam-se à medida que a personagem deles vai precisando, permanecendo em evidência mesmo de pois de terem sido utilizados. À medida que a ansiedade vai aumentando e a depressão vai tomando conta de Paul, o seu quotidiano vai-se tornando caótico.
A contracenar com o actor está a música, sempre presente no violino de Ângela Fortes. Os sons retirados do violino intensificam as emoções que o homem solitário vai desenvolvendo ao longo da sua busca. Há uma ambiência criada pela música de inspiração francesa que evoca a procura do romance e da sedução. No entanto, a abordagem que este homem faz às mulheres, assusta-as, pondo-as em fuga à primeira fala menos adequada. Paul observa os pombos no seu ritual de acasalamento e quer reproduzir todo aquele comportamento para o universo humano. Desajeitado, não consegue fazer devidamente a corte às mulheres que lhe parecem interessantes, sendo progressivamente rejeitado por todas elas.
A tensão adensa-se e Paul acaba por comemorar o seu trigésimo segundo aniversário sozinho. As mulheres não gostam sequer que Paul se aproxime das suas conversas, que gostariam de manter no seu íntimo. Paul começa a ter um comportamento disfuncional face à realidade. É incapaz de se levantar para ir trabalhar, é incapaz de encarar as pessoas felizes na rua, é incapaz se de ver a si próprio como um ser humano integrado. Falta-lhe o complemento. É despedido e começa a completa degradação da sua pessoa.
O peixe que guarda num aquário e que nada no seu espaço limitado começa também a sufocar pela falta inesperada do seu elemento vital, a água. Quase no último arquejo, Paul recolhe o peixe e devolve-o à vida. Foi um adiamento do inevitável. Depois de desempregado, fica ainda mais difícil encontrar uma companheira que o queira para partilhar os seus dias. Brinca com uma boneca insuflável mas aquilo que Paul procura é o carinho, o companheirismo que uma mulher lhe poderia dar. O desemprego vai implicar o corte de bens necessários como a luz. Paul ilumina-se à luz de velas e já nem se alimenta convenientemente. Tem medo de sair à rua, vivendo obcecado com o enfrentar de pessoas normais e enquadradas socialmente.
A pressão é demasiada e Paul decide reencontra-se com os outros de uma maneira trágica, atirando-se da sua janela, perdendo de vez o ânimo que o alimentava. No fim, as pernas de uma mulher passam na janela de Paul. Metáfora da sensualidade libertadora que conduziu Paul para fora de si próprio.
Mulheres que Passam é um espectáculo que toca o público. Um desenho de luz apuradíssimo, também da autoria de Figueira Cid, um suporte musical intenso que cria no espectador a empatia necessária para a compreensão do estado de alma da personagem, um actor que sabe transmitir verdade e a assinatura de Figueira Cid na encenação tornaram este espectáculo num momento de raro prazer para quem teve a possibilidade de a ele assistir. Um dos poucos momentos de intenso prazer estético encontrado nos últimos tempos. Só uma questão de pormenor: foi preciso deslocarmo-nos a Évora para podermos ter acesso a esta obra. Mas no fim de contas, o que são duas horas quando nos espera um momento de raro prazer executado por profissionais de excelência? Nada.
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