Thursday, August 16, 2007

A voz humana


Foi no dia 21 de Janeiro de 2006, no Auditório do IPJ, que a voz de Lagos, através do corpo de três mulheres, se insinuou em Faro. Através de uma organização do INATEL, o espectáculo “A voz Humana”, de Jean Cocteau, encenado por Ruben Garcia apresentou com dignidade o Teatro Experimental de Lagos.
Um filme mudo, do princípio do séc. XX, mostra-nos a imagem de uma mulher apaixonada, postais onde se lêem juras de amor eterno, beijos trocados furtivamente. O filme acaba e a cena mostra-se branca e repartida por três lugares intensamente femininos: a cama, o toucador e a chaise-longue. Surgem três perfis de uma mesma mulher que se impõem na cena. Silménia Magalhães, Guida Vieira e Paula são as três mulheres que dão voz ao drama de Cocteau. Ao drama de milhares de mulheres que vêem a sua vida mudada de um dia para o outro porque o seu amante lhes disse: acabou. As três actrizes, sobriamente vestidas com figurinos brancos de cetim deslizam nos seus próprios sentimentos e nas mentiras em que querem acreditar. A “Voz Humana” é um texto que vive das linhas telefónicas cruzadas, das chamadas que caem, tal como a vida de uma mulher que é deixada. Mostrando a fragmentação da personalidade entre a aceitação, a negação e a revolta, Ruben Garcia construiu o espectáculo em volta de três eixos, três facetas da mesma mulher, que se cruzam, que se envolvem e que concorrem para um desfecho que se adivinha trágico. O pormenor do vermelho chama-nos a atenção para os arquétipos de paixão, erotismo, mas também de dor, sangue, sofrimento, vingança. A almofada vermelha a que a mulher se abraça quando está na cama, evoca a saudade dos momentos de paixão, a caixa vermelha ao lado do toucador evoca-nos o erotismo assente naquela quando olhava para o espelho e pensava que se estava a arranjar para ir ter com o homem que amava. O isqueiro estava na proporção directa do desejo de vingança. Uma vingança pequena mas que queima. O espelho do toucador estava incompleto, como incompleta a mulher se sente a partir do momento em que não tem o afecto do outro. Quando se olha ao espelho sente o peso da mágoa e da ausência, como se não se reconhecesse e se visse desfigurada, como o espelho. É caso para se dizer: qual é a distância que vai do meu coração ao teu? A distância de uma linha telefónica?
Os três egos, tais instâncias da personalidade, evocam o super ego, com o sentido de dever que aceita o fim de uma relação ilícita e extraconjugal, o id, com toda a pulsão de prazer e o ego, confuso, sofrendo com a subjugação ao princípio de dever e perante a iminência da negação das pulsões do id. As três facetas da mulher interagem partilhando pequenos gestos, pequenos prazeres, como um copo de licor ou um cigarro. A interpretação das três actrizes está bastante consistente, sóbria, sem deixar de transparecer a emoção nos momentos adequados. O mundo feminino é ali exposto, aberto, e o espectador sente-se um invasor daquele mundo secreto e privado.
Talvez Ruben Garcia tenha exagerado na leitura demasiado óbvia quando divide os adereços de saída pelas três mulheres. O jogo continuaria mais interessante se, à semelhança do resto do espectáculo a encenação mantivesse a partilha total dos adereços, porque é de uma totalidade que se entrecruza. Daí a confusão estabelecida depois da mutação da luz. A mulher é inteira, mas ao mesmo tempo fragmentada. Escrava dos seus próprios sentimentos, ama genuinamente, tal como genuinamente odeia. E genuinamente perdoa, para genuinamente se querer vingar. E tem lucidez para dizer: “Claro, fui ridícula, mas se levei o telefone para a cama é porque ele apesar de tudo nos une ainda…”
As linhas caem, os fios soltam-se, tal como a ligação que a prende ao homem que ama. E se hoje já não há ligações feitas através da telefonista, há ligações na internet que caem, que se desligam e que são o único elo de ligação com o mundo. Há quem diga que o texto de Cocteau envelheceu mal. Mas os textos envelhecem ou rejuvenescem de acordo com as roupagens que lhe dão. E esta visão do texto de Cocteau, apesar de se manter fiel a uma estética da primeira metade do século XX, consegue fazer com que o espectador do séc XXI entre no texto e sofra com ele.
Um bom trabalho que merecia certamente um melhor acolhimento e adesão do público de Faro.

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