Friday, April 10, 2009

Brecht Revisitado

No dia 3 de Abril o Teatro Municipal de Portimão levou à cena o espectáculo A Mãe, reescrito por Bertolt Brecht a partir do texto de Maximo Gorki. Gonçalo Amorim encenou o espectáculo, recriando o espírito de ruptura que Brecht operou em 1932. A Mãe conta a história de uma viúva cujo filho é operário que tenta esclarecer os seus companheiros distribuindo panfletos clandestinamente. O contexto histórico reporta-se ao período que antecede da revolução russa. Os operários reuniam-se em segredo e a sua luta era a de preservar o magro salário que o patrão tinha acordado. Uma história datada do princípio do séc. XX, apresentada em 1932 e, contudo, actual no séc. XXI. Em Portugal o texto de Brecht foi encenado pela Comuna há mais de 30 anos. Era o tempo de celebrar vitórias lembrando tempos que não se queria que voltassem. Hoje é importante mostrar que as vitórias de outrora estão a ser derrotadas pouco a pouco.
O espectáculo foi interpretado por 10 actores: Bruno Bravo, Carla Galvão, Carla Maciel, Carloto Cotta, David Pereira Bastos, Mónica Garnel, Paula Diogo, Pedro Carmo, Raquel Castro e Romeu Costa. Contou com música de Hanns Eisler tocada ao vivo por João Paulo Esteves da Silva. Neste espectáculo o espectador consegue entrar dentro da linha teatral de Brecht e aperceber-se do contexto político pelo qual aqueles operários e camponeses passaram durante aquele período crítico. Esses homens e mulheres vulgares foram a matéria-prima de onde extraiu o sentido épico, universal da vida. Brecht considerava essencial o desaparecimento da ilusão cénica que, segundo ele, pertencia ao teatro tradicional. Pretendia que o seu teatro, pela sua força poética, suscitasse por parte do espectador a crítica ao acontecimento contado em cena.
No caso do espectáculo A Mãe, a luta é pelo direito a um salário fixo, a direitos inalienáveis dos trabalhadores, ao direito à greve, ao direito à escolaridade mínima que possa proporcionar um olhar lúcido e esclarecido perante a vida. A Mãe fala acerca das batalhar travadas pelos trabalhadores e dos seus custos. Gonçalo Amorim fez questão de manter o efeito de distanciação, criado por Brecht. Segundo Brecht, Para o actor é difícil e cansativo provocar, em si, todas as noites, determinadas emoções ou determinados estados de alma; em contrapartida é-lhe mais fácil revelar os indícios externos que acompanham e denunciam essas emoções. Mas a transmissão de emoções ao espectador – contágio emocional – não é, decerto, uma transmissão pura e simples. Nela surge o efeito de distanciação, que não se apresenta sob uma forma despida de emoções, mas, sim, sob forma de emoções bem determinadas que não precisam de encobrir-se com as da personagem representada. Perante a mágoa, o espectador pode sentir alegria. Perante a raiva, repugnância. Neste espectáculo vimos os actores apresentarem-se depois de terem começado o acto de representação, vimo-los a entoarem belíssimas canções acompanhados ao piano e ao acordeão, apercebemo-nos da ficha técnica a meio do espectáculo, fomos invadidos por imagens, fotografias e dísticos projectados num écran e sofremos com os actores a dor de Pelagea Vlassova: a incansável Mãe que luta por mostrar que ainda há esperança de um mundo melhor. Foram muitas as contaminações de linhas, e estéticas, desde o teatro oriental até ao musical. No final, a imagem bela de uma mãe ainda com o filho no ventre, que estica a corda do sistema, largando-a com um violento som para que a humanidade ouça a voz da razão e possa lutar contra a injustiça.
Uma encenação conseguida, suportada por um excelente colectivo de actores que deslizou ao longo do espectáculo com o ritmo apropriado e com a cumplicidade esperada. Segundo Gonçalo Amorim este foi “um processo colectivo, uma viagem estética e de emancipação.” Todos nós ouvimos a nossa Pelagea Vlassova clamar por um mundo mais justo. Alguns de nós ficaram com vontade de transformar o mundo. Foi cumprido o projecto de Brecht. Quanto mais não seja por isso é justo lembrar as palavras do dramaturgo, escritas em 1934: Hoje, o escritor que deseje combater a mentira e a ignorância tem de lutar, pelo menos, com cinco dificuldades. É-lhe necessária a coragem de dizer a verdade, numa altura em que por toda a parte se empenham em sufocá-la; a inteligência de a reconhecer, quando por toda a parte a ocultam; a arte de a tornar manejável com uma arma; o discernimento suficiente para escolher aqueles em cujas mãos ela se tornará eficaz; finalmente precisa de ter habilidade para difundir entre eles. Estas dificuldades são grandes para os que escrevem sob o jugo do fascismo; aqueles que fugiram ou foram expulsos também sentem o peso delas; e até os que escrevem num regime de liberdade burguesa não estão livres da sua acção.

Vocês sabem o que é o verdadeiro Amor?


“Vocês Sabem o que é o verdadeiro Amor?” Esta é a pergunta inicial do espectáculo Modigliani, encenado por Luísa Monteiro e levado à cena pela Companhia de Teatro Contemporâneo. A adaptação dramatúrgica segue de perto o guião homónimo de Make Davis, protagonizado por Andy Garcia. No espectáculo da Companhia de Teatro Contemporâneo os espectadores puderam contar com as interpretações de Jorge Cabral, no papel de Modigliani, Luís Marreiros, interpretando Modigliani em adolescente, Mónica Cunha como Jeanne Hébuterne, Nuno Pardal como o agente Zbo e Marco Pedroza, interpretando Picasso. Como vozes off pudemos ouvir Miguel Martinho, Fernando André e Luísa Monteiro.
O espectáculo retrata os últimos tempos do pintor Modigliani. Desde o dia em que conheceu Jeanne Hébuterne até ao dia da sua morte. É uma homenagem à genialidade de um homem que não tendo conseguido a notoriedade de Picasso, promoveu o seu ciúme e caminhou a passos largos para a auto-destruição. Modigliani estudou em Veneza e Florença, antes de se fixar em Paris, em 1906. Instalou-se inicialmente em Montmartre, mudando-se depois para Montparnasse, onde pintaria algumas das suas telas mais conhecidas. Apaixonou-se por uma pintora de 17 anos, Jeanne Hebuterne, com a qual viveu uma paixão avassaladora que a levou ao suicídio, um dia depois da sua morte.
Modigliani é um espectáculo sobre o verdadeiro Amor. Sobre a essência da pintura e o alimento do verdadeiro Amor. Modigliani disse a Jeanne: quando conhecer a tua alma hei-de pintar os teus olhos. Esta promessa foi cumprida quando foi desocultada a tela que pintou para o concurso das artes de Paris, no qual se sagrou vencedor, com o retrato de Jeanne. Segundo a produção, «em Modigliani o espectador viaja até ao ano de 1919, em Paris. É o fim da I Grande Guerra e o período de ouro da arte. O Salão dos Artistas junta a elite artística de então, onde não falta a rivalidade e o ciúme, o que acontece entre Modigliani e Picasso, ambos pintores marcados pela genialidade, pela arrogância e pelas paixões. A paixão de um pelo outro, a paixão da pintura e… a paixão pela bela Jeanne Hébuterne. Jeanne é a heroína de um tempo único. Por amor à arte de Modigliani, a jovem entrega toda a sua vida. Literalmente». No espectáculo assiste-se ao enamoramento entre Jeanne e Modigliani. Jorge Cabral interpretou de forma bastante convincente o génio boémio de Modigliani. A Mónica Cunha já faltou o olhar apaixonado de quem abandona tudo pelo verdadeiro amor. Foi mais convincente na interpretação da loucura, e na tocante cena da despedida. Jeanne partiu com o perdão de quem percebeu que a sua vida tinha acabado com a de Modigliani. A doçura de Jeanne transforma-se em força, lançando-se para o abismo do amor. À dança de acasalamento faltou, contudo, a paixão que se pode observar no encontro de duas almas gémeas. A encenação utilizou como recurso a imagem de Modigliani em adolescente, ajudando-o na criação e aconselhando-o a preservar Jeanne e a sua vida. Esse daimon apresentava-se despojado de tudo, acocorado ao lado do cavalete do pintor. Talvez essa estrutura daimónica tivesse ganho uma dimensão mais estruturante para o espectáculo se tivesse conservado a figura da criança que viu os seus pais serem despojados dos seus bens, aprendendo a lição mais marcante: a sua única riqueza, o seu único bem, será a arte. A criança teve essa premonição, e é a criança que o acompanha na difícil fase da criação. O facto de se ter optado por um adolescente corta esse fio que Modigliani desenrola desde a infância. Quanto às outras personagens, Nuno Pardal apresenta-se com desenvoltura no papel do agente e amigo de Modigliani. Marco Pedroza aparece pouco agressivo como Picasso, sobretudo quando se confronta com Jorge Cabral.
Ao nível da opção de encenação, a ideia de espaço vazio domina a cena. É muito bonita a imagem da tela vazia passar por Jeanne quando Modigliani a retrata. Quase sentimos o arrebatamento de que Poe nos fala no seu conto O Retrato Oval. Quando Modigliani consegue, finalmente, pintar os olhos de Jeanne, ela morre por amor. Também é interessante a projecção no tecto das telas censuradas com os nus, na exposição individual de Modigliani. Mas a alma de Jeanne talvez merecesse ser revelada no final do espectáculo, quando exibem a tela do concurso em que Modigliani se sagrou vencedor no concurso anual dos artistas de Paris, projectando-a na tela em branco. Esse talvez fosse o momento necessário para o confronto entre a arte, o desejo e o amor. Todos os sentimentos que serviram a vida de Modigliani concentrados numa tela.
Os ritmos que os actores utilizavam nas suas contracenas eram os adequados. As pausas, as hesitações, os olhares constituíam, por si só, uma sinfonia latente que se sentia ao longo do espectáculo. Os actores, sobretudo nas interpretações de Modigliani e Jeanne, dialogavam através do silêncio, o que conferiu uma profundidade acrescida ao espectáculo. Mas se o espectáculo fala através dos olhares, dos ritmos, da pintura, dos corpos, sentiu-se a falta do vestido de veludo azul com que Jeanne pousou para Modigliani. Aquele vestido que ele roubou para lhe vestir a alma.
No geral foi um espectáculo tocante, com interpretações consistentes, com um suporte musical adequado às emoções que os actores transmitiam, mas ao qual faltou alguma paixão. Aquela que se tem quando se reconhece o verdadeiro amor.

Os Sobreviventes


O TEMPO encerrou este mês de Março o festival fervor de Buenos Aires, em colaboração com o Centro Cultural de Belém. Esse festival está inserido numa iniciativa mais vasta, dedicada às Cidades Invisíveis, epíteto de Jorge Luis Borges com o intuito de descobrir a magia de uma cidade através da sua literatura, da sua música, do seu teatro. No mês de Março Portimão dançou com o tango argentino, emocionou-se ao ouvir o som do bandoneon, penetrou na língua de Borges através da sua poesia, sentiu vontade de mudar o mundo depois do espectáculo apresentado no Dia Internacional do Teatro A Omissão da família Coleman, de Claudius Tolcachir, e que foi interpretado pelo grupo Timbre 4.
Timbre 4 é um grupo de teatro argentino que começou a trabalhar no seu novo espaço em 1998. Os novos actores, ansiosos para encontrar um lugar no qual pudessem investigar e continuar crescendo como criadores, começaram assim a cumprir seu sonho, decidindo a linha de teatro que queriam fazer. Essa linha assumiu-se como realista, expondo as maleitas que se escondem por detrás de uma ordem aparente e estável.
O espectáculo A Omissão da família Coleman, interpretado por Lobo de Ellen, Miriam Odorico, Hindu de Lavalle, Tamara Kiper, Lautaro Perotti, Diego Faturos, Gonzalo Ruiz, e Jorge Marrom baseia-se num texto realista que descreve o quotidiano de uma família disfuncional. A matriarca é o elo de ligação da família, o suporte inquestionável que todos respeitam. Para além da avó coexistem na mesma casa a mãe e três filhos: dois gémeos e o mais velho, com problemas psíquicos. A família vive numa desarrumação permanente, que faz parte do seu quotidiano. A desarrumação estende-se da casa para as suas vidas, pois a ligação àquele espaço impede-os de se autonomizarem enquanto pessoas. O único membro da família que se quer autonomizar é a rapariga mais nova, Gaby, que compra roupa usada e a transforma para a vender adaptada à moda actual. Trabalha na sua máquina de costura, leva a roupa à lavandaria, faz o possível por manter a casa arrumada, faz o pequeno-almoço para a família e ainda empresta dinheiro ao seu irmão gémeo quando ele precisa. Para além da avó, que é o elo emocional, Gaby é o elo estruturante daquela família.
Memé, a mãe, vive num mundo só dela. Teve duas ligações amorosas, das quais gerou quatro filhos, mas nunca trabalhou para os sustentar. Partilha a cama com o filho mais velho e sonha ainda com a possibilidade de ter um companheiro que a ajuda a gerir uma família. Passa o tempo a pedir dinheiro aos filhos, saltitando pela desarrumação com um sorriso absurdo de quem não tem a consciência do mundo à sua volta.
O filho mais novo, gémeo de Gaby, vive de esquemas, perigosos que não partilha sequer com a sua irmã. O filho mais velho, Mário, é completamente desestruturado. Partilhando ainda a cama com a mãe, é incapaz de sobreviver sozinho. Comporta-se como uma criança pequena provocando lutas com o seu irmão, provocando discussões com a sua irmã, recusando-se a tomar banho ou sequer a tirar as meias, que usa há meses. A filha mais velha, Verónica, foi levada muito pequena daquele contexto familiar pelo seu pai. Sente afecto unicamente pela sua avó, mas é absolutamente indiferente relativamente aos seus irmão e à sua mãe. Apesar de ter dois filhos, a sua família não os conhece e ela não tem a mínima intenção de lhos dar a conhecer. Está bem instalada na vida porque foi a única que se desvinculou daquela unidade orgânica que constitui um todo.
Um dia a avó adoece e vai para o hospital. A família entra em pânico mas todos são solidários no cuidado que a avó precisa para ultrapassar a doença. É internada numa clínica privada, paga pela neta mais velha. Nesse espaço, diferente do habitual, os laços e os afectos vão-se transformando. Memé já há algum tempo que pede à filha mais velha que a leve daquela casa. A filha diz-lhe simplesmente que não, e que nem sequer é sua intenção pensar na proposta de sua mãe. A mãe não tem qualquer problema em cortar a ligação com os outros filhos ou com a avó, querendo apenas sobreviver àquele antro de podridão. A filha mostra-se sempre insensível, como se não tivesse qualquer laço com a sua mãe. Quando a avó está internada pensa levar os seus filhos para que esta os conheça. Mas perante a possibilidade do resto da sua família os conhecer, desiste da ideia.
Com a avó fora de casa, as contas deixam de ser pagas e a família aproveita o internamento da anciã para tomar um banho quente na clínica. Tentam encomendar comida a ser descontada na conta de internamento da avó, mas a irmã mais velha recusa colaborar com esse abuso.
A avó morre no hospital. Esse acontecimento marca a passagem para um novo estado dentro daquele clã. A matriarca morreu e a família dissolveu-se. Gaby encontra um companheiro e vai viver com ele. O seu irmão gémeo pede-lhe dinheiro e desaparece para parte incerta. A mãe convence finalmente Verónica a aceitá-la em sua casa. Não precisa de voltar a casa para ir buscar nada. Vida nova, tudo novo. Mário regressa a casa sozinho, depois de lhe terem diagnosticado no hospital uma leucemia que o condena a um mês de vida. A família dissolveu-se e ele volta a uma casa vazia onde irá morrer sozinho. Todos eram sobreviventes, vivendo no limite da dissolução evidente mas impronunciável. A pergunta imanente é: Quem sou eu fora desta casa e desta família? A resposta seria: Algo mais do que um sobrevivente.
Este espectáculo opera como um doloroso murro no estômago sobre o poder que a estrutura família pode ter em relação à identidade individual dos seus membros. Perante o contexto sócio-económico actual, em que cada vez mais é difícil aos jovens autonomizarem-se e formaram a sua própria família de forma independente, este texto é um aviso sobre os prejuízos que a geração canguru. O facto de a maior parte dos jovens não conseguir assumir as suas responsabilidades está a causar à sociedade em geral, um mal-estar, tornando-a doente e provocando comportamentos disfuncionais no seio das famílias. Como o autor nos mostrou desapiedadamente, os netos, apesar de gostarem muito da avó, já estavam a fazer as partilhas e a sortear o seu quarto, mesmo antes de ela ter morrido.
Isto é um aviso a todos. O facto das políticas sociais não combaterem a especulação imobiliária, os empregos dignos para os jovens contribuem para famílias doentes e, consequentemente, para uma sociedade débil e doente.
Este espectáculo esteve em cena quatro nãos em Buenos Aires e foi nomeado para inúmeros prémios, como o melhor trabalho original de teatro de 2006 da Argentina.