Friday, April 10, 2009
Os Sobreviventes
O TEMPO encerrou este mês de Março o festival fervor de Buenos Aires, em colaboração com o Centro Cultural de Belém. Esse festival está inserido numa iniciativa mais vasta, dedicada às Cidades Invisíveis, epíteto de Jorge Luis Borges com o intuito de descobrir a magia de uma cidade através da sua literatura, da sua música, do seu teatro. No mês de Março Portimão dançou com o tango argentino, emocionou-se ao ouvir o som do bandoneon, penetrou na língua de Borges através da sua poesia, sentiu vontade de mudar o mundo depois do espectáculo apresentado no Dia Internacional do Teatro A Omissão da família Coleman, de Claudius Tolcachir, e que foi interpretado pelo grupo Timbre 4.
Timbre 4 é um grupo de teatro argentino que começou a trabalhar no seu novo espaço em 1998. Os novos actores, ansiosos para encontrar um lugar no qual pudessem investigar e continuar crescendo como criadores, começaram assim a cumprir seu sonho, decidindo a linha de teatro que queriam fazer. Essa linha assumiu-se como realista, expondo as maleitas que se escondem por detrás de uma ordem aparente e estável.
O espectáculo A Omissão da família Coleman, interpretado por Lobo de Ellen, Miriam Odorico, Hindu de Lavalle, Tamara Kiper, Lautaro Perotti, Diego Faturos, Gonzalo Ruiz, e Jorge Marrom baseia-se num texto realista que descreve o quotidiano de uma família disfuncional. A matriarca é o elo de ligação da família, o suporte inquestionável que todos respeitam. Para além da avó coexistem na mesma casa a mãe e três filhos: dois gémeos e o mais velho, com problemas psíquicos. A família vive numa desarrumação permanente, que faz parte do seu quotidiano. A desarrumação estende-se da casa para as suas vidas, pois a ligação àquele espaço impede-os de se autonomizarem enquanto pessoas. O único membro da família que se quer autonomizar é a rapariga mais nova, Gaby, que compra roupa usada e a transforma para a vender adaptada à moda actual. Trabalha na sua máquina de costura, leva a roupa à lavandaria, faz o possível por manter a casa arrumada, faz o pequeno-almoço para a família e ainda empresta dinheiro ao seu irmão gémeo quando ele precisa. Para além da avó, que é o elo emocional, Gaby é o elo estruturante daquela família.
Memé, a mãe, vive num mundo só dela. Teve duas ligações amorosas, das quais gerou quatro filhos, mas nunca trabalhou para os sustentar. Partilha a cama com o filho mais velho e sonha ainda com a possibilidade de ter um companheiro que a ajuda a gerir uma família. Passa o tempo a pedir dinheiro aos filhos, saltitando pela desarrumação com um sorriso absurdo de quem não tem a consciência do mundo à sua volta.
O filho mais novo, gémeo de Gaby, vive de esquemas, perigosos que não partilha sequer com a sua irmã. O filho mais velho, Mário, é completamente desestruturado. Partilhando ainda a cama com a mãe, é incapaz de sobreviver sozinho. Comporta-se como uma criança pequena provocando lutas com o seu irmão, provocando discussões com a sua irmã, recusando-se a tomar banho ou sequer a tirar as meias, que usa há meses. A filha mais velha, Verónica, foi levada muito pequena daquele contexto familiar pelo seu pai. Sente afecto unicamente pela sua avó, mas é absolutamente indiferente relativamente aos seus irmão e à sua mãe. Apesar de ter dois filhos, a sua família não os conhece e ela não tem a mínima intenção de lhos dar a conhecer. Está bem instalada na vida porque foi a única que se desvinculou daquela unidade orgânica que constitui um todo.
Um dia a avó adoece e vai para o hospital. A família entra em pânico mas todos são solidários no cuidado que a avó precisa para ultrapassar a doença. É internada numa clínica privada, paga pela neta mais velha. Nesse espaço, diferente do habitual, os laços e os afectos vão-se transformando. Memé já há algum tempo que pede à filha mais velha que a leve daquela casa. A filha diz-lhe simplesmente que não, e que nem sequer é sua intenção pensar na proposta de sua mãe. A mãe não tem qualquer problema em cortar a ligação com os outros filhos ou com a avó, querendo apenas sobreviver àquele antro de podridão. A filha mostra-se sempre insensível, como se não tivesse qualquer laço com a sua mãe. Quando a avó está internada pensa levar os seus filhos para que esta os conheça. Mas perante a possibilidade do resto da sua família os conhecer, desiste da ideia.
Com a avó fora de casa, as contas deixam de ser pagas e a família aproveita o internamento da anciã para tomar um banho quente na clínica. Tentam encomendar comida a ser descontada na conta de internamento da avó, mas a irmã mais velha recusa colaborar com esse abuso.
A avó morre no hospital. Esse acontecimento marca a passagem para um novo estado dentro daquele clã. A matriarca morreu e a família dissolveu-se. Gaby encontra um companheiro e vai viver com ele. O seu irmão gémeo pede-lhe dinheiro e desaparece para parte incerta. A mãe convence finalmente Verónica a aceitá-la em sua casa. Não precisa de voltar a casa para ir buscar nada. Vida nova, tudo novo. Mário regressa a casa sozinho, depois de lhe terem diagnosticado no hospital uma leucemia que o condena a um mês de vida. A família dissolveu-se e ele volta a uma casa vazia onde irá morrer sozinho. Todos eram sobreviventes, vivendo no limite da dissolução evidente mas impronunciável. A pergunta imanente é: Quem sou eu fora desta casa e desta família? A resposta seria: Algo mais do que um sobrevivente.
Este espectáculo opera como um doloroso murro no estômago sobre o poder que a estrutura família pode ter em relação à identidade individual dos seus membros. Perante o contexto sócio-económico actual, em que cada vez mais é difícil aos jovens autonomizarem-se e formaram a sua própria família de forma independente, este texto é um aviso sobre os prejuízos que a geração canguru. O facto de a maior parte dos jovens não conseguir assumir as suas responsabilidades está a causar à sociedade em geral, um mal-estar, tornando-a doente e provocando comportamentos disfuncionais no seio das famílias. Como o autor nos mostrou desapiedadamente, os netos, apesar de gostarem muito da avó, já estavam a fazer as partilhas e a sortear o seu quarto, mesmo antes de ela ter morrido.
Isto é um aviso a todos. O facto das políticas sociais não combaterem a especulação imobiliária, os empregos dignos para os jovens contribuem para famílias doentes e, consequentemente, para uma sociedade débil e doente.
Este espectáculo esteve em cena quatro nãos em Buenos Aires e foi nomeado para inúmeros prémios, como o melhor trabalho original de teatro de 2006 da Argentina.
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