Numa mesma semana pudemos assistir a dois espectáculos que paradoxalmente tocam as mesmas categorias estéticas mas que as mostraram de maneira inversamente proporcional. O sublime e o horrível foram mostrados no teatro Lethes e no Teatro das Figuras, arriscando o equilíbrio da programação.
As águias voam Legatto foi um recital encenado da responsabilidade da Companhia de música teatral com obras para canto e piano coordenado por Helena Rodrigues.o recital começou no átrio do teatro Lethes com a aparição de um homem, António Laginha, de cartola e capa negra, com um ramo de rosas na mão.
De dentro do teatro ouve-se a voz de Manuela Moniz, cantando o improviso São rosas, Senhores, são Rosas. As rosas vermelhas são cobertas e descobertas pela capa de cetim do misterioso homem, e depois distribuídas a algumas das senhoras presentes. Depois de uns passos de dança, António Laginha convidou os presentes a dirigirem-se para o interior do Teatro Lethes, onde dançou mais um pouco e espalhou as pétalas das rosas até à entrada do teatro. Pisadas as rosas, o público entrou no teatro onde o esperavam no palco Helena Rodrigues ao piano, acompanhando a voz de Manuela Moniz. Não se percebeu muito bem a razão do homem misterioso no recital, que estaria mais equilibrado sem aquela figura excêntrica a dar uns passos de dança entre os espectadores. O cenário é composto por um charriôt ostentando fato de cena cenografados em tamanho gigante. A lógica da inserção de um camarim simbólico no palco é discutível, até porque as duas belas mulheres estavam a apresentar o recital comentado assumindo o palco como espaço de representação e não de preparação do actor. Se houvesse essa intenção os diálogos havidos circunscreviam-se às personagens e não à procura de cumplicidade com o público.
O recital decorreu de forma tranquila, sem convulsões nem aplausos, lembrando uma reunião de famílias aristocratas convidadas para o salão de uma nobre marquesa. A capa posta sobre os ombros da pianista, como se fosse uma transferência de poder deformou a figura elegante de Helena Rodrigues. O vestido branco coberto de rosas lembrava o recital das flores Se as flores fossem eternas eu não queria morrer, que Paula Cardoso Rocha apresentou nos anos 80 no Teatro Nacional D. Maria II, com Eunice Muñoz e Ana Padrão. Isto é, um recital datado, visto, revisto, com um leve cheiro a rosas murchas que não comoveu o público, como se pôde constatar pelo silêncio sepulcral que se fazia sentir entre as canções. Um recital onde o sublime da música e da poesia se transformaram num espectáculo horrível e entediante, porque não soube emocionar o pouco público que acorreu ao teatro Lethes.
Por outro lado, o público de Faro foi presenteado com uma agradável surpresa. Moby Dick, a história do cachalote albino contada por Herman Melville apresentou-se diante do público no Teatro das Figuras. Uma história trágica, sustentada por sentimentos baixos, como a vingança e a sede de destruição, mas apresentada de uma forma sublime.
A encenação de António Pires é sustentada por uma paixão pelo texto de Melville, que considera um dos mais importantes de todos os tempos. Segundo o encenador, este romance “Consegue de uma forma quase perfeita reproduzir a condição humana em toda a sua complexidade”. António Pires socorreu-se de um elenco capaz de se entregar com seriedade e por uma equipa técnica que foi capaz de criar os recursos para alimentar a emoção do espectador. A cenografia de João Mendes Ribeiro permitiu uma realização plástica do espectáculo inovadora e extremamente rica a nível simbólico. Como é que uma prancha, semelhante a um half pipe pode ser ao mesmo tempo proa de navio, convés, crista de onda? É preciso o toque de genialidade que faz acreditar a tornar o invisível visível. A luz de José Álvaro Correia torna a visão do mar credível em todos os seus matizes.
Curiosamente António Pires dá à primeira parte da sua encenação um tom de musical, com coreografias divertidas e canções de marinheiros que contêm a esperança que os conduz para o mar. Na segunda parte, mais sombria, onde se expõem as misérias humanas, não há espaço para cantos. O rapaz do tambor é elevado a remador e caçador de baleias, apagando a música das almas dos marinheiros. O confronto com a baleia branca preenche na totalidade os sentidos quer dos marinheiros, quer dos espectadores.
A dramaturgia de Maria João Cruz acrescenta à obra de Melville a figura da mulher expectante, a mulher que fica em terra a ver os barcos partir e antevê o desastre no mar. A sibila dos pescadores que teme por eles e os espera na praia. A mulher pela qual todos querem voltar. Essa mulher é magistralmente interpretada por Maria Rueff, que sabe comunicar com o público, contando o que vai no coração daqueles duros homens.
António Pires reduz a oito os marinheiros que partem para a caçada à baleia branca. Esses marinheiros são símbolos de categorias humanas, que vão desde a maldade de Ahab até à inocência ambivalente do selvagem. Os nomes bíblicos também encerram em si mesmo uma simbologia, devolvendo à personagem o destino imposto pelo nome. Por exemplo, como nos explica a produção, “Ahab na Bíblia é um dos mais desagradáveis Reis de Israel. Leva o seu povo à perdição por fazê-los adorar um deus pagão. A dada altura, Acab manda matar Naboth para se apoderar da sua vinha. O profeta Elias chama-o à razão e Acab acaba por se arrepender. Morre no cerco de Ramoth e, conforme a profecia de Elias, os cães lambem o seu sangue.” Ahab é justamente a personagem interpretada por Miguel Guilherme. O sanguinário Capitão do navio que, por vingança, quer caçar Moby Dick, a baleia que num confronto anterior lhe tinha levado a perna.
Neste espectáculo a luta entre Ahab e o grande cetáceo simboliza em sentido lato a luta que o homem tem vindo a exercer contra a natureza. Moby Dick encarna todas as espécies ameaçadas, todas as atrocidades de que a natureza tem sido vítima. E a vingança de Moby Dick tem vindo a ser sentida através dos tsunamis, dos tornados, os desastres naturais são a voz da natureza a pedir ao homem que pondere e que mude os seus hábitos. A mulher que preconiza o augúrio previne-nos para pouparmos bem nas nossas candeias porque “em cada litro de óleo há uma gota de sangue humano.” O horrível da miséria humana transformado num espectáculo sublime. O sublime para Kant é a desarmonia em relação as faculdades, pois o sublime assombra, é terrificante e de uma beleza magnífica e absolutamente grande. O sublime surge de uma tensão entre imaginação e razão gerando uma relação conflituosa da imaginação com a razão. Ora, a imaginação por si só acaba no nada, fica um abismo onde poderia perder-se, o impensável, o horror e fazendo com que a razão violente a imaginação, pois a mesma não consegue medir o que é o sublime. Este espectáculo não só foi sublime como também inesquecível.
O pouco público que o Teatro Lethes recebeu para o recital de canto e piano contrastou com as três sessões praticamente esgotadas do Teatro das Figuras para assistir a Moby Dick. O público de Faro já sabe o que deve ver. Assim a programação soubesse o que devia programar.
As águias voam Legatto foi um recital encenado da responsabilidade da Companhia de música teatral com obras para canto e piano coordenado por Helena Rodrigues.o recital começou no átrio do teatro Lethes com a aparição de um homem, António Laginha, de cartola e capa negra, com um ramo de rosas na mão.
De dentro do teatro ouve-se a voz de Manuela Moniz, cantando o improviso São rosas, Senhores, são Rosas. As rosas vermelhas são cobertas e descobertas pela capa de cetim do misterioso homem, e depois distribuídas a algumas das senhoras presentes. Depois de uns passos de dança, António Laginha convidou os presentes a dirigirem-se para o interior do Teatro Lethes, onde dançou mais um pouco e espalhou as pétalas das rosas até à entrada do teatro. Pisadas as rosas, o público entrou no teatro onde o esperavam no palco Helena Rodrigues ao piano, acompanhando a voz de Manuela Moniz. Não se percebeu muito bem a razão do homem misterioso no recital, que estaria mais equilibrado sem aquela figura excêntrica a dar uns passos de dança entre os espectadores. O cenário é composto por um charriôt ostentando fato de cena cenografados em tamanho gigante. A lógica da inserção de um camarim simbólico no palco é discutível, até porque as duas belas mulheres estavam a apresentar o recital comentado assumindo o palco como espaço de representação e não de preparação do actor. Se houvesse essa intenção os diálogos havidos circunscreviam-se às personagens e não à procura de cumplicidade com o público.
O recital decorreu de forma tranquila, sem convulsões nem aplausos, lembrando uma reunião de famílias aristocratas convidadas para o salão de uma nobre marquesa. A capa posta sobre os ombros da pianista, como se fosse uma transferência de poder deformou a figura elegante de Helena Rodrigues. O vestido branco coberto de rosas lembrava o recital das flores Se as flores fossem eternas eu não queria morrer, que Paula Cardoso Rocha apresentou nos anos 80 no Teatro Nacional D. Maria II, com Eunice Muñoz e Ana Padrão. Isto é, um recital datado, visto, revisto, com um leve cheiro a rosas murchas que não comoveu o público, como se pôde constatar pelo silêncio sepulcral que se fazia sentir entre as canções. Um recital onde o sublime da música e da poesia se transformaram num espectáculo horrível e entediante, porque não soube emocionar o pouco público que acorreu ao teatro Lethes.
Por outro lado, o público de Faro foi presenteado com uma agradável surpresa. Moby Dick, a história do cachalote albino contada por Herman Melville apresentou-se diante do público no Teatro das Figuras. Uma história trágica, sustentada por sentimentos baixos, como a vingança e a sede de destruição, mas apresentada de uma forma sublime.
A encenação de António Pires é sustentada por uma paixão pelo texto de Melville, que considera um dos mais importantes de todos os tempos. Segundo o encenador, este romance “Consegue de uma forma quase perfeita reproduzir a condição humana em toda a sua complexidade”. António Pires socorreu-se de um elenco capaz de se entregar com seriedade e por uma equipa técnica que foi capaz de criar os recursos para alimentar a emoção do espectador. A cenografia de João Mendes Ribeiro permitiu uma realização plástica do espectáculo inovadora e extremamente rica a nível simbólico. Como é que uma prancha, semelhante a um half pipe pode ser ao mesmo tempo proa de navio, convés, crista de onda? É preciso o toque de genialidade que faz acreditar a tornar o invisível visível. A luz de José Álvaro Correia torna a visão do mar credível em todos os seus matizes.
Curiosamente António Pires dá à primeira parte da sua encenação um tom de musical, com coreografias divertidas e canções de marinheiros que contêm a esperança que os conduz para o mar. Na segunda parte, mais sombria, onde se expõem as misérias humanas, não há espaço para cantos. O rapaz do tambor é elevado a remador e caçador de baleias, apagando a música das almas dos marinheiros. O confronto com a baleia branca preenche na totalidade os sentidos quer dos marinheiros, quer dos espectadores.
A dramaturgia de Maria João Cruz acrescenta à obra de Melville a figura da mulher expectante, a mulher que fica em terra a ver os barcos partir e antevê o desastre no mar. A sibila dos pescadores que teme por eles e os espera na praia. A mulher pela qual todos querem voltar. Essa mulher é magistralmente interpretada por Maria Rueff, que sabe comunicar com o público, contando o que vai no coração daqueles duros homens.
António Pires reduz a oito os marinheiros que partem para a caçada à baleia branca. Esses marinheiros são símbolos de categorias humanas, que vão desde a maldade de Ahab até à inocência ambivalente do selvagem. Os nomes bíblicos também encerram em si mesmo uma simbologia, devolvendo à personagem o destino imposto pelo nome. Por exemplo, como nos explica a produção, “Ahab na Bíblia é um dos mais desagradáveis Reis de Israel. Leva o seu povo à perdição por fazê-los adorar um deus pagão. A dada altura, Acab manda matar Naboth para se apoderar da sua vinha. O profeta Elias chama-o à razão e Acab acaba por se arrepender. Morre no cerco de Ramoth e, conforme a profecia de Elias, os cães lambem o seu sangue.” Ahab é justamente a personagem interpretada por Miguel Guilherme. O sanguinário Capitão do navio que, por vingança, quer caçar Moby Dick, a baleia que num confronto anterior lhe tinha levado a perna.
Neste espectáculo a luta entre Ahab e o grande cetáceo simboliza em sentido lato a luta que o homem tem vindo a exercer contra a natureza. Moby Dick encarna todas as espécies ameaçadas, todas as atrocidades de que a natureza tem sido vítima. E a vingança de Moby Dick tem vindo a ser sentida através dos tsunamis, dos tornados, os desastres naturais são a voz da natureza a pedir ao homem que pondere e que mude os seus hábitos. A mulher que preconiza o augúrio previne-nos para pouparmos bem nas nossas candeias porque “em cada litro de óleo há uma gota de sangue humano.” O horrível da miséria humana transformado num espectáculo sublime. O sublime para Kant é a desarmonia em relação as faculdades, pois o sublime assombra, é terrificante e de uma beleza magnífica e absolutamente grande. O sublime surge de uma tensão entre imaginação e razão gerando uma relação conflituosa da imaginação com a razão. Ora, a imaginação por si só acaba no nada, fica um abismo onde poderia perder-se, o impensável, o horror e fazendo com que a razão violente a imaginação, pois a mesma não consegue medir o que é o sublime. Este espectáculo não só foi sublime como também inesquecível.
O pouco público que o Teatro Lethes recebeu para o recital de canto e piano contrastou com as três sessões praticamente esgotadas do Teatro das Figuras para assistir a Moby Dick. O público de Faro já sabe o que deve ver. Assim a programação soubesse o que devia programar.
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