Depois de Miguel Rovisco é sempre um risco alguém ousar escrever um qualquer texto dramático sobre Sebastião José de Carvalho e Melo. Talvez apenas por isso seja de louvar a coragem de Alexandre Honrado em tentar escrever uma peça sobre a figura do Marquês de Pombal. O texto em que se baseia a 30ª produção da ACTA, apesar de ser fruto de uma razoável investigação histórica torna-se duvidoso no que respeita ao tom com que Alexandre Honrado trata o tema. Escrever um texto dramático baseado em factos históricos é difícil e pode ser uma tarefa aliciante. Escrever uma comédia com base em factos históricos é um desafio ainda mais aliciante mas muito mais difícil. E é aqui que entramos na fragilidade do espectáculo. O texto, evocando um provérbio popular, era como se “o pé estivesse sempre a fugir para a chinela”, assentando em clichés e expressões que são garantias de riso fácil, faltando-lhe a elegância que esta produção merecia. Aliás, ao longo do espectáculo, os momentos claramente de comédia foram os utilizados pela brilhante encenação de Paulo Moreira e pelo desempenho dos actores, quando não estavam a falar nas “hemorróidas do Marquês” ou nas frouxas revisteiras piscadelas de olho à contemporaneidade, como as obras do “túnel do Marquês” ou os benefícios da vida urbana conferidos pelos arrumadores de automóveis. Tudo tão visto e tão gasto que nem um sorriso amarelo é capaz de fazer esboçar no espectador. A comédia instala-se quando a aia, interpretada pela actriz Elisabete Martins entra em cena e a domina com a sua presença. Quando o Marquês, Luís de A. Miranda, aparece no engenho construído por Tó Quintas, conduzido pelo seu aio, João Evaristo. A aparição da Rainha D. Maria I, Glória Fernandes, ao som da ária da Rainha da Noite, de Mozart, é hilariante, bem como todas as marcações que evidenciam a sua loucura. Começa-se a ouvir o texto e a pobreza de espírito é de tal ordem que quase estraga o trabalho dos quatro excelentes actores que o interpretam. A recriação do terramoto de 1755 é um momento dramático em que a genialidade do encenador consegue fazer da tragédia real um momento de comédia. Porque é a música, a movimentação em cena da aia, os adereços todos ganhando vida própria que provocam o riso genuíno no espectador. Aí sim, estamos perante um bom momento de comédia, que não precisa de descer à mediocridade do “portuguesinho” que faz sempre tudo mal e pensa sempre o pior de si próprio. O artefacto que Paulo Moreira criou para ilustrar o “Século das Luzes” trouxe aquele tipo de humor inteligente que o público algarvio já exige. O candeeiro kitch de plasma é bem o símbolo bem conseguido do esclarecimento do século das Luzes. Da revolução francesa, do Émile, de Kant, de Mozart, como se de repente todos tivéssemos descoberto que tínhamos uma Razão, que até aí desconhecíamos. Mas talvez o que mais incomode no texto seja a relação desequilibrada entre a solidariedade masculina, reflectida na afinidade entre o Marquês e o seu aio e a falta de solidariedade da aia para com a sua Rainha. É certo que não é digno para uma aia andar de espanador na mão mas, ser a aia da Rainha seria o máximo a que, naquela época, uma mulher do povo poderia ascender. Que mulher não se solidarizaria com a dor de outra que viu todos os seus filhos morrerem um após outro? Mesmo uma mulher que afirma: “sou uma autodidacta: tudo o que eu não sei ignoro-o sozinha” poderia ter de quando em vez um olhar de compaixão por uma Rainha que passou os infortúnios de D. Maria I. Mas talvez essa seja a melhor frase do texto, condensando a figura do povo iletrado que faz questão em continuar no obscurantismo, indiferente ao século das Luzes e aos ideais humanistas. Mas é sobretudo cruel quando a Rainah quer criar uma escola para raparigas, contribuindo para o desenvolvimento da sua educação, e a aia comenta esse propósito com apartes desprovidos de sentido com piadas contemporâneas sobre a capacidade que as meninas têm não de aprender música mas de a dar,ou o uso polimórfico que se pode ter do conhecimento das línguas
Salvando o texto, está a figura do Marquês de Pombal que, por si só, vale o espectáculo. Luís de A. Miranda esqueceu-se em absoluto de si próprio para interiorizar o Marquês de Pombal na sua velhice. Convincente, não exagera o tom alquebrado nem a dor permanente que sentia. É uma representação fiel de um velho derrotado que não deixou de acreditar em Portugal. Glória Fernandes, persuasiva na loucura da Rainha, tem por vezes um registo gritado em que a voz a trai e a afasta de outras interpretações a que já assistimos. Mas a alternância conseguida entre a loucura e a lucidez é bem gerida, assim como a sua agitada movimentação em cena, povoada de jogos de infância, sugerindo os jogos de poder e os filhos que lhe foram desaparecendo. João Evaristo, no papel de aio poderia ser mais desenvolto e solto, acompanhando mais de perto a aia, personagem da mesma condição. Por fim, Elisabete Martins rodopia, solta-se e mostra-se no seu esplendor na interpretação da aia. Mau grado o texto, que mostra uma mulher ignorante, insensível, egoísta, incapaz de sentir a dor do outro, e se esquecermos o recurso ao “destroce!” do arrumador de automóveis, podemos dizer que a interpretação da actriz salva o papel da aia.
Um apontamento bonito, evocativo da nossa história recente, foi a voz de Luís Vicente, interpretando D. José I, quando deixou escrita a vontade de libertar todos os presos políticos após a sua morte. Quem viu as portas de Caxias abrindo-se ao som do Grândola Vila Morena não deixou certamente de soltar um arrepio ao ouvir D. José suportado pelos passos que formam os primeiros som da canção que marcou a libertação da ditadura de Estado Novo. Já despropositada pareceu a movimentação panfletária dos representantes do povo, atravessando a cena de braço no ar gritando pela liberdade.
Os figurinos foram concebidos com um cuidado e pormenor extremo, evocando a marca do barroco e a cultura do excesso. O suporte musical, adequado, talvez se tornasse mais significativo para o espectáculo com a escolha de um autor português daquela época.
O tema do espectáculo, a relação de poder entre uma rainha humanista e culta e um primeiro-ministro prepotente e déspota é aligeirada e bastante apagada por um texto medíocre. O Marquês, no auge da sua decrepitude, pediu perdão à rainha e ao povo por todos os horrores que mandou executar, como o processo dos Távora. Foi condenado ao exílio por uma mulher que, apesar de enlouquecida, foi piedosa ao ponto de não condenar um velho doente. Há mais Portugal para vir, diz o Marquês no fim do texto. A história assim nos mostrou. O que nos mostrou este espectáculo foi que, desde que haja uma boa encenação e actores competentes o texto pode não ser o adequado. Mas como diz o povo, “mal por mal… Marquês de Pombal”. Ainda bem que a ACTA pôde contar com este Marquês.
Salvando o texto, está a figura do Marquês de Pombal que, por si só, vale o espectáculo. Luís de A. Miranda esqueceu-se em absoluto de si próprio para interiorizar o Marquês de Pombal na sua velhice. Convincente, não exagera o tom alquebrado nem a dor permanente que sentia. É uma representação fiel de um velho derrotado que não deixou de acreditar em Portugal. Glória Fernandes, persuasiva na loucura da Rainha, tem por vezes um registo gritado em que a voz a trai e a afasta de outras interpretações a que já assistimos. Mas a alternância conseguida entre a loucura e a lucidez é bem gerida, assim como a sua agitada movimentação em cena, povoada de jogos de infância, sugerindo os jogos de poder e os filhos que lhe foram desaparecendo. João Evaristo, no papel de aio poderia ser mais desenvolto e solto, acompanhando mais de perto a aia, personagem da mesma condição. Por fim, Elisabete Martins rodopia, solta-se e mostra-se no seu esplendor na interpretação da aia. Mau grado o texto, que mostra uma mulher ignorante, insensível, egoísta, incapaz de sentir a dor do outro, e se esquecermos o recurso ao “destroce!” do arrumador de automóveis, podemos dizer que a interpretação da actriz salva o papel da aia.
Um apontamento bonito, evocativo da nossa história recente, foi a voz de Luís Vicente, interpretando D. José I, quando deixou escrita a vontade de libertar todos os presos políticos após a sua morte. Quem viu as portas de Caxias abrindo-se ao som do Grândola Vila Morena não deixou certamente de soltar um arrepio ao ouvir D. José suportado pelos passos que formam os primeiros som da canção que marcou a libertação da ditadura de Estado Novo. Já despropositada pareceu a movimentação panfletária dos representantes do povo, atravessando a cena de braço no ar gritando pela liberdade.
Os figurinos foram concebidos com um cuidado e pormenor extremo, evocando a marca do barroco e a cultura do excesso. O suporte musical, adequado, talvez se tornasse mais significativo para o espectáculo com a escolha de um autor português daquela época.
O tema do espectáculo, a relação de poder entre uma rainha humanista e culta e um primeiro-ministro prepotente e déspota é aligeirada e bastante apagada por um texto medíocre. O Marquês, no auge da sua decrepitude, pediu perdão à rainha e ao povo por todos os horrores que mandou executar, como o processo dos Távora. Foi condenado ao exílio por uma mulher que, apesar de enlouquecida, foi piedosa ao ponto de não condenar um velho doente. Há mais Portugal para vir, diz o Marquês no fim do texto. A história assim nos mostrou. O que nos mostrou este espectáculo foi que, desde que haja uma boa encenação e actores competentes o texto pode não ser o adequado. Mas como diz o povo, “mal por mal… Marquês de Pombal”. Ainda bem que a ACTA pôde contar com este Marquês.
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