Expurgar, finalmente a culpa das tragédias foi o propósito da companhia de teatro l’ilástico, trazido a Faro dias 24 e 25 e apresentado no CAPa. Um exercício denso para quem domina a temática das tragédias clássicas.
José Tolentino de Mendonça escreveu, Jacinto Lucas Pires assinou a dramaturgia, Marcos Barbosa encenou. Perdoar Helena, interpretado por Alhelí Guerrero, Pedro Martinez e John Romão é mais um exercício sobre o legado dos antigos gregos, desta vez sobre uma das mais trágicas culpas da história. Uma guerra causada pela beleza de uma mulher. Terá sido verdade, ou apenas uma versão fantasiosa contada por homens? Quantos anos mais expiará o espírito de Helena uma culpa de que, não sabemos sequer, se tem alguma responsabilidade?
Este primeiro trabalho para teatro de José Tolentino de Mendonça abre-nos a curiosidade para o outro lado da história, a da mulher, a verdadeira, que com ou sem culpa formada, carrega com o seu peso. Talvez seja por isso que Helena não fala, articulando um outro som, mas provocando ruído sobre as conversas. O ruído do tempo. Helena fecha o círculo de giz de onde se escapa para a sua cabine de controlo. É ela quem controla toda a acção, é a sua imagem que domina. A verdadeira tecedeira, como o texto faz questão de nos lembrar que é a sua nomeação na Ilíada. “Aqui estamos, enviados pela tecedeira. / Pela tecedeira? / É assim que surge nomeada na Ilíada. Helena tece as batalhas de Gregos e Troianos… Batalhas que ela teria provocado… e como é desmedida sua tapeçaria! (…) A Helena verdadeira nunca esteve em Tróia. Paris arrastou para lá um fantasma, um ser que se dissiparia no ar.”
Helena tece os fios do tempo nas ondas sonoras que cria. A história, de um dramaturgo que decide perdoar a Helena e se arrepende no dia da estreia, cancelando o espectáculo, percorre o universo trágico de forma original, viajando pelo universo interior das personagens.
Irónico, o texto envolve-se também numa apreciação do global, não se contentando em explorar o universo intimista das três personagens: “As cidades são hoje arrasadas pelos desígnios do petróleo... que aspecto de beleza tem o crude? uma mancha venal, oleosa... Mas a desgraça que o belo ateia, essa desgraça não é mais desculpável...”
Estas palavras, que no dizer de José Tolentino de Mendonça andam constantemente em busca de vozes, de rostos e de corpo, encontraram morada nos actores Pedro Martinez e John Romão e na deslumbrante presença de Alhelí Guerrero. Os dois actores, equilibrados na gestão das emoções quase que fazem esquecer algumas imprecisões ao nível da dicção.. A actriz plena de uma força, de uma presença que evolui quando desliza na cena, irradiando-a com a sua beleza. Perdoar Helena porque, segundo esse dramaturgo, Helena nunca esteve em Tróia, era um simulacro, um fantasma arrastado por Paris, criado pelos deuses. E assim durou 10 anos a guerra de Tróia. Em virtude de um simulacro.. Mas também, “Qual é a guerra que não começa por causa de um engano?” E o actor continua acusando o dramaturgo. De medo, de saber que tudo não passa de uma ilusão e que o melhor é caminhar sempre, como os nómadas, numa viagem sem fim. Viagens em que cruzamos meridianos comuns “Há um meridiano que todas as vidas cruzam, quer se pense a sua rotação como mortal ou infinita”. Como o presente com o passado, fechados num círculo de giz, de onde é quase impossível sair. As presenças assumidas pelos actores em cena multiplicam-se, num jogo que roça a esquizofrenia das vozes interiores. E de repente: “A verdade revela-se para que entres nela.” Sem oráculos nem enigmas. Mas a verdade pode revelar-se cruel, como a que torna necessário o jogo das memórias e da sua necessária persistência. Do nosso olhar para as coisas sem as reconhecer. “Quem são estes que se repetem nas fotografias?” E olhamos para o passado e não o reconhecemos. Como fazemos com Helena. Por isso criamos histórias. Por isso sentimos que lhe devemos o perdão. Para deixarmos de sentir a culpa de a ver. "Vejo Helena por toda a parte...repetidamente... Primeiro em sonhos, apenas. (...) Mal fechava os olhos (...) ela vinha correndo, voando através da fria luz.” Com este espectáculo, lucidamente, perdoamos Helena.
José Tolentino de Mendonça escreveu, Jacinto Lucas Pires assinou a dramaturgia, Marcos Barbosa encenou. Perdoar Helena, interpretado por Alhelí Guerrero, Pedro Martinez e John Romão é mais um exercício sobre o legado dos antigos gregos, desta vez sobre uma das mais trágicas culpas da história. Uma guerra causada pela beleza de uma mulher. Terá sido verdade, ou apenas uma versão fantasiosa contada por homens? Quantos anos mais expiará o espírito de Helena uma culpa de que, não sabemos sequer, se tem alguma responsabilidade?
Este primeiro trabalho para teatro de José Tolentino de Mendonça abre-nos a curiosidade para o outro lado da história, a da mulher, a verdadeira, que com ou sem culpa formada, carrega com o seu peso. Talvez seja por isso que Helena não fala, articulando um outro som, mas provocando ruído sobre as conversas. O ruído do tempo. Helena fecha o círculo de giz de onde se escapa para a sua cabine de controlo. É ela quem controla toda a acção, é a sua imagem que domina. A verdadeira tecedeira, como o texto faz questão de nos lembrar que é a sua nomeação na Ilíada. “Aqui estamos, enviados pela tecedeira. / Pela tecedeira? / É assim que surge nomeada na Ilíada. Helena tece as batalhas de Gregos e Troianos… Batalhas que ela teria provocado… e como é desmedida sua tapeçaria! (…) A Helena verdadeira nunca esteve em Tróia. Paris arrastou para lá um fantasma, um ser que se dissiparia no ar.”
Helena tece os fios do tempo nas ondas sonoras que cria. A história, de um dramaturgo que decide perdoar a Helena e se arrepende no dia da estreia, cancelando o espectáculo, percorre o universo trágico de forma original, viajando pelo universo interior das personagens.
Irónico, o texto envolve-se também numa apreciação do global, não se contentando em explorar o universo intimista das três personagens: “As cidades são hoje arrasadas pelos desígnios do petróleo... que aspecto de beleza tem o crude? uma mancha venal, oleosa... Mas a desgraça que o belo ateia, essa desgraça não é mais desculpável...”
Estas palavras, que no dizer de José Tolentino de Mendonça andam constantemente em busca de vozes, de rostos e de corpo, encontraram morada nos actores Pedro Martinez e John Romão e na deslumbrante presença de Alhelí Guerrero. Os dois actores, equilibrados na gestão das emoções quase que fazem esquecer algumas imprecisões ao nível da dicção.. A actriz plena de uma força, de uma presença que evolui quando desliza na cena, irradiando-a com a sua beleza. Perdoar Helena porque, segundo esse dramaturgo, Helena nunca esteve em Tróia, era um simulacro, um fantasma arrastado por Paris, criado pelos deuses. E assim durou 10 anos a guerra de Tróia. Em virtude de um simulacro.. Mas também, “Qual é a guerra que não começa por causa de um engano?” E o actor continua acusando o dramaturgo. De medo, de saber que tudo não passa de uma ilusão e que o melhor é caminhar sempre, como os nómadas, numa viagem sem fim. Viagens em que cruzamos meridianos comuns “Há um meridiano que todas as vidas cruzam, quer se pense a sua rotação como mortal ou infinita”. Como o presente com o passado, fechados num círculo de giz, de onde é quase impossível sair. As presenças assumidas pelos actores em cena multiplicam-se, num jogo que roça a esquizofrenia das vozes interiores. E de repente: “A verdade revela-se para que entres nela.” Sem oráculos nem enigmas. Mas a verdade pode revelar-se cruel, como a que torna necessário o jogo das memórias e da sua necessária persistência. Do nosso olhar para as coisas sem as reconhecer. “Quem são estes que se repetem nas fotografias?” E olhamos para o passado e não o reconhecemos. Como fazemos com Helena. Por isso criamos histórias. Por isso sentimos que lhe devemos o perdão. Para deixarmos de sentir a culpa de a ver. "Vejo Helena por toda a parte...repetidamente... Primeiro em sonhos, apenas. (...) Mal fechava os olhos (...) ela vinha correndo, voando através da fria luz.” Com este espectáculo, lucidamente, perdoamos Helena.
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