Friday, August 17, 2007

Daqui em diante


O Teatro das Figuras, em Faro, trouxe uma vez mais Olga Roriz ao Algarve. E de toda a região acorreu o público, que já se tornou fiel a esta coreógrafa que, ao fazer variações sobre o mesmo tema, como Bach, consegue surpreender.
Primeiro o corpo. Não. Primeiro o lugar. Não. Primeiro ambos. Ora um deles. Ora o outro. Até fartar de um deles e tentar o outro. Até fartar também deste e fartar outra vez de um deles. Assim em diante. Dalgum modo em diante. Até fartar de ambos. Vomitar e partir. Para onde nem um nem outro. Até fartar desse lugar. Vomitar e voltar. Outra vez o corpo. Onde nenhum. Outra vez o lugar. Onde nenhum. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Melhor outra vez. Ou melhor pior. Falhar pior outra vez. Ainda pior outra vez. Até fartar de vez. Vomitar de vez. Partir de vez. Onde nem um nem outro de vez. De vez e tudo. Beckett escreveu, Olga Roriz sentiu, a obra nasceu.
Olga Roriz propôs-se homenagear Beckett para celebrar o centésimo aniversário do seu nascimento. Worstward Ho, traduzido por Miguel Esteves Cardoso por Pioravante Marche, foi o pretexto para a construção de mais uma belíssima e sugestiva obra deste marco da coreografia nacional. Para o dramaturgo o mundo carece de sentido e a expressão é fútil. Foi nessa falha de sentido que a coreografia Daqui em Diante assentou, no contraste entre uma convicção emocional e um facto inevitável.
O espaço em branco, apresentado na cenografia, branca, com uma luz fria e branca, é uma metáfora do espaço em branco e do intervalo deixado pelo autor para ser preenchidos pelos corpos dos bailarinos. As pausas que se intrometem na dramaturgia dos corpos constroem uma partitura de sentidos que, por um lado os afasta, e por outro os aproxima. Em muitos escritos de Beckett, pensa-se algumas vezes em fazer silêncio, em abandonar a palavra, no desejo de "desescrever". Esta imagem é sugerida quando Beckett escreve; “Dizer por ser dito. Desdito. De ora em diante dizer por ser desdito.” Como o gesto. Feito, refeito, voltar atrás, avançar mais um pouco, regressar. E começar tudo outra vez. Como na arte da fuga, à semelhança de Bach, também Olga Roriz reúne todos os recursos coreográficos disponíveis elaborando-os por meio de um processo arquitectónico de completa interpretação. Perpassa, nesses escritos, a noção de crise da linguagem tematizada na crítica à arbitrariedade dos nomes. Nesse contexto, o dizer muito ou pouco é usado para afirmar a descoberta de algum encanto novo no mundo das palavras e dos ruídos. “É porque sim e porque não… porque falta e porque muitas vezes é de sobra. É ilusão, parece haver uma razão para tudo mas no fundo não existe razão para nada. Neste caos nascemos, perdemo-nos e morremos. E porque a única regra deste jogo é exactamente a falta delas, limitamo-nos a gritar bem alto que podemos não compreender. Mas recusamo-nos a afundar sem ser ouvidos…”.
Todos estes sentidos ocultos se desocultam na dramaturgia do corpo que Olga Roriz impôs aos seus bailarinos. A repetição expressiva do gesto, a tentativa de recuperação da pureza da matriz inicial, a caricatura do estereótipo e a assunção do feminino no homem são algumas das ferramentas de que Olga Roriz se serviu para dar corpo às palavras de Becckett. As mulheres de Olga Roriz exprimem com glamour o eterno feminino. Os homens, também. À semelhança de coturnos gregos todos dançam em saltos altos que elevam a figura e lhe dão outro realce. “Dizer chão. Chão nenhum mas dizer chão de modo a dizer dor.” Encontros violentos, tentando recuperar a falta de sentido do mundo e esquecer a solidão, a angústia. Os jogos corporais com os cabelos das bailarinas, com a terra, com os objectos do quotidiano conduzem o espectador áquilo que, para Olga Roriz são “momentos privados agarrados ao tempo. Partilhas individuais marcadas pela solidão e o vazio. Um humor subtil, a tristeza, a ternura e a cruel beleza da realidade serão o traço de união nesse espaço colectivo onde se reescrevem as lembranças. Vestiremos as nossas verdades para as poder despir com o despudor da inocência.” Diríamos que Olga Roriz através de um humor corrosivo, por vezes cruel consegue tocar na essência da inocência, reescrevendo a sensualidade.
Daqui em diante tem a interpretação de Catarina Câmara, Maria Cerveira, Sylvia Rijmer, Danilo Mazzotta, Jack Jones e Pedro Santiago Cal. A selecção musical, feita para tocar directamente no coração, foi feita por Olga Roriz. Os cenários e os figurinos, também de sua autoria, tiveram a criação conjunta de Pedro Santiago Cal. O desenho de luz teve a qualidade da assinatura de Celestino Verdades.
A homenagem de Roriz a Beckett fez-nos sentir mortais e, como tal, perfeitos porque “ser um artista é falhar como mais ninguém se atreve a falhar. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor.”

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