Sunday, August 19, 2007

Lisístrata, ou o que a imaginação quiser!



O quinquagésimo terceiro Festival de Teatro Clássico de Mérida voltou à cidade Património Mundial da Humanidade. Entre Julho e Agosto os amantes do teatro podem dar um pulinho à vizinha Espanha e esquecer-se de que existe uma Silly Season a inundar o Algarve. E são imensos os que querem fugir à imbecilidade que nos é imposta, pois durante o festival os bilhetes esgotam e o público adere em massa aos grandes clássicos.
Cada vez gosto mais de Espanha. Não só por ser um povo que admira e acarinha a sua própria cultura, como por combater a tendência irracional de transformar os meses de Verão, que é a altura em que as pessoas podem enfim concentrar-se mais em obras mais densas, numa estação em que não se pensa, em que o pensamento crítico fica em segundo plano. No Algarve isso verifica-se através das programações mais ligeiras, pelo encerramento para férias de alguns teatros, pela insistência da comédia em detrimento de temas mais trágicos. Por isso, chega o Verão e sente-se a necessidade de fugir para um destino onde tratam o público como uma entidade que continua a usufruir em pleno da sua razão e do seu sentido crítico.
Nem o calor da Estremadura espanhola afastou, durante cerca de um mês e meio, os milhares de pessoas que todos os anos rumam à cidade de Merida, Património Mundial da Humanidade, para se deleitaram com uma apresentação no magnífico teatro Romano. O Teatro romano, com capacidade para cerca de três mil pessoas, enche-se de quinta a domingo, nas noites de Julho e Agosto, permitindo voltar a ouvir as vozes dos clássicos.
Para engrandecer este acontecimento a organização envolve outros espaços da cidade, ligados à mística da Antiguidade Clássica, rentabilizando o evento. Assim, Mérida enche-se de instalações, espectáculos para a infância, espectáculos de dança, que oferecem ao espectador um leque variado de escolhas.
Quanto à encenação de Lisístrata, a heroína criada pelo comediógrafo Aristófanes, vale a pena explorar um pouco a recriação deste tema.
Lisístrata é um texto magnífico que exalta o poder que as mulheres detêm sobre os homens, mesmo que aparentemente sejam mais frágeis ou menos dotadas de engenho. No texto original Lisístrata, uma mulher ateniense, cansada de suportar uma guerra que se arrastava há mais de 10 anos, resolve convocar as mulheres dos países desavindo, fartas também de estarem em guerra, para pensarem numa estratégia de obrigarem os seus maridos a estabelecerem a paz. Combinam então todas, por meio de um juramento sagrado, que irão fazer greve ao sexo e que irão recusar aos seus maridos os legítimos prazeres do casamento. Os homens não aguentam tal restrição e estabelecem, por fim, a paz desejada. Este é um texto de esperança que tem sido reconstituído como um hino à paz e ao amor.
A versão de Manuel Martínez Mediero, encenada por António Corencia, recupera o nome da heroína Lisístrata mas reescreve por completo a obra, retirando-a, quer do seu contexto espacio cultural, quer do seu registo cómico, quer ainda do sentido de esperança que se vive no fim. A Lisístrata de Mediero, datada e machista, adultera por completo o sentido de igualdade que Aristófanes propõe. No contexto de Mediero, Lisístrata é retirada de Atenas e inserido num mundo mais bárbaro: Esparta. Lisístrata espartana é a rainha que apela à greve ao sexo, mas que não é muito bem aceite pelas suas conterrâneas. Mirrina, nesta versão, surge como uma traidora ao seu género e à sua classe, ambicionando mesmo o lugar de esposa do Rei de Esparta. A versão de Mediero contém várias contradições, pois Lisístrata, quando inquirida sobre a criação dos filhos, responde que não iam cair no ridículo de entregar as crianças aos pais para as criar. A paridade passa por todos os outros campos, menos pela educação das crianças. Não deixa de ser curioso que Mediero tenha colocado como fiel aliada da rainha uma prostituta, que luta pelo fim da guerra, usando as mesmas armas para que se acabasse com a guerra. Nesta guerra de mulheres, só as impuras ao nível dos valores, como se veio a revelar Mírrina, sucumbem.
A versão de Mediero assume no texto a violação e a morte de uma jovem rapariga, recuperada na encenação como o Capuchinho Vermelho, que encontra um homem velho e abjecto. Esse facto acaba por se elevar à categoria de símbolo, dando mais força à causa das mulheres, no sentido de se unirem mais e não vacilarem perante os seus desejos. O final, supreendente, mostra uma Mírrina, que em Aristófanes é uma mulher frágil, mas fiel a Lisístrata, como uma traidora da causa, seduzindo o Rei de Esparta, e prometendo-lhe os prazeres do leito, caso este matasse Lisístrata e a elegesse, a ela, Mirrima, como rainha de Esparta. E o facto é que, depois de um discurso inflamado de Lisístrata, pela liberdade como valor fundamental, não apenas de género mas da humanidade, Floripon, o Rei, mata-a, para poder, finalmente, desfrutar dos prazeres da carne com a traidora do reino, que não luta pela paz, pelo bem comum, mas pela sua causa individual. De facto, como assume o encenador António Corencia, “Do autor grego fica o título, e aquilo que serve de ponto de partida: acabar com as guerras que ensanguentam os países e atiram as mulheres para a solidão e para o abandono”.
Com um elenco que reúne trinta actores em público, entre protagonistas e figurantes, temos de dizer que a encenação não foi cuidada, assentando sobretudo na figura de Lisístrata, interpretada por Miriam Diaz-Aroca. Muitos figurantes andavam perdidos pela cena, avançando sem segurança nas cenas que implicavam movimento. O coro dos velhos tinha uns figurinos interessantes, mas a fala que deveria ser em uníssono por vezes fragmentava-se por não haver em todos os intervenientes um sentido de ritmo. Os figurinos de Lisístrata foram concebidos para acentuar a figura da actriz, não respeitando a linha clássica de vestuário. E um pormenor de muito mau gosto foi a personagem do poeta Tirteu, interpretada pelo actor Jorge Lucas, que brincava com a efemenização dos poetas, assumindo-se como homossexual de plumas cor-de-rosa.
Foi pena também não se retirar mais partido do todo do teatro, como fez, por exemplo, Bob Wilson na sua Proserpina. Esse espectáculo deu-nos, de facto, a dimensão do que pode ser a genialidade quando associada a um espaço majestoso.
Lisístrata de Manuel Martinez Mediero não é a Lisístrata de Aristófanes. E se a tendência da dramaturgia contemporânea é reescrever os clássicos, tendo a preocupação de conservar a mensagem original, não me parece decente que um dramaturgo contemporâneo usurpe o nome de uma peça de uma autor clássico para dele fazer o que muito bem quer, adulterando a mensagem original. No fundo, um texto que convidava a uma vivência de exaltação, tendo o sexo como elemento catártico, foi transformado num espectáculo que se serve do sexo como móbil da traição da mentora do espírito da liberdade.
Seja como for, vale a pena ir a Mérida, nem que seja pela discussão destes temas e pelo estímulo ao pensamento crítico. Até para o ano!

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