Friday, August 17, 2007

Dedos de luz


A noite estava agradável. Morna, com a lua a adivinhar-se cheia, espreitando por detrás do castelo de Castro Marim. A multidão envolvia o estádio de futebol, desta vez com um intuito especial: o de assistir a um concerto de um guitarrista. Passando pela turba anónima ouviam-se vários sotaques, alguns idiomas onde predominavam o português e o castelhano. Alguns artistas conhecidos da nossa praça também se apinhavam na fila para a entrada. Apesar da certeza da espera as pessoas mantinham-se calmas, pois tinham a certeza do seu lugar marcado. Dentro do estádio milhares de cadeiras brancas esperavam pelos seus ocupantes. Por pouco tempo: às 22h00 já o estádio estava repleto. Às 22h10 começava o concerto. Paco de Lucía, com a sua simplicidade habitual, entra no palco com a sua guitarra e começa dedilhá-la. Os primeiros acordes soaram como os de uma qualquer outra guitarra. Mas à medida que a música ia evoluindo, as cadeiras desconfortáveis deixavam de se fazer sentir, o palco deixou de existir, a multidão à volta desapareceu. Só ficou a alma do artista, materializada nos dedos que criavam aquela música transcendente. Só algumas vezes se consegue sentir esse tipo de emoção extática em que tudo o resto desaparece, ficando apenas uma tensão especial entre o espectador e a obra de arte. No dia 20 de Agosto, em Castro Marim, os milhares de pessoas que estiveram no concerto de Paco de Lucía puderam sentir essa emoção que o virtuoso músico consegue extrair das cordas para a oferecer ao público. Sozinho ou acompanhado pelos seus músicos instrumentistas e cantadores de flamenco, Paco de Lucía, o grande mestre da guitarra, continua a provocar um entusiasmo mesmo entre as camadas mais jovens, como se sentiu há 14 anos, aquando do seu primeiro grande concerto em Portugal. Galardoado com o prémio “Príncipe das Astúrias” por ter transcendido fronteiras e ser hoje um músico de dimensão musical, dele o júri afirmou: “Tudo quanto possa ser expressado com as seis cordas da Guitarra, está nas suas mãos, animadas pela emocionante profundidade, sensibilidade e limpeza da máxima honradez interpretativa.” Foi essa honradez limpa na interpretação da guitarra que Paco de Lucía transmitiu num concerto de duas horas. Para alguns pode ter faltado o complemento dos corpos dançando ao som da guitarra flamenca. Mas a guitarra de Paco de Lucía, iluminada pelos seus dedos, tem o poder de desencadear a sensualidade andaluza, levando a alma do espectador a dançar interiormente. Com a lua acariciando-nos com a sua luz sentimos o prazer de nos sabermos mortais, capazes de cometer um sagrado pecado.

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