Thursday, August 16, 2007

Cântico dos cânticos - Dar corpo à essência da criação


“Quão belos são os teus pés/ nas sandálias que trazes, ó filha de príncipe!/ As colunas das tuas pernas são como anéis/ trabalhados por mãos de artista./ O teu umbigo é uma taça arredondada, / que nunca está desprovida de vinho./ O teu ventre é como um monte de trigo/ cercado de lírios.” Este extracto dos magnífico texto Cântico dos cânticos abre uma estreita frincha sobre a luminosidade do texto completo do Antigo Testamento atribuído a Salomão. Com tradução de José Tolentino de Mendonça, João Grosso utilizou as palavras do poema bíblico para construir um espectáculo interpretado por seis actores e um músico, Stefano Zorzanello, fragmentando-o em vários quadros. Os seis actores, Inês Nogueira, Luís Castanheira, Mariana Amaral, Miguel Loureiro, Teresa Sobral e Vítor d’Andrade chegam ao palco com um ar que irradia satisfação e começam a cantar o título do poema: Cântico dos cânticos. Os figurinos de Rui Alexandre, assumidamente kitch como dita a moda, indiciam a ruptura com as linguagens mais convencionais em que habitualmente se cai quando se tratam estes temas. E de facto, o sinal de aviso funcionou. A encenação, algo arrojada, cortou com a linha mais convencional de apresentação destes temas. Os actores evoluíam num jogo simbólico que ora entrava no domínio da poesia sensual e erótica, ora se limitavam a uma crítica mais mordaz à sociedade de consumo. Havia como que uma fragmentação do ego nas três mulheres, manifestada nos figurinos e na atitude, mostrando as imensas faces reveladas numa mulher, desde a frescura de uma rapariga bonita, interpretada por Mariana Amaral até à maturidade de uma mulher, evidenciada por Inês Nogueira, passando pela assunção do erotismo, patente no vestido vermelho lamé de Teresa Sobral. Em relação às personagens masculinas supõe-se que tenha havido um mesmo jogo de fragmentação, embora esse jogo não se tivesse enunciado de forma tão evidente.
No cenário existem caixas grandes de cartão que, com uma rotação, assumem o aspecto de um tapete de relva florido, de imagens de frutos ou de uma pintura em tons de cinzento. Os actores usam-nas para se servirem delas como suporte, como habitáculo, como leito. Às vezes a mudança de posição das caixas grandes, do tamanho de frigoríficos, é difícil e forçada, cortando o fluir do espectáculo. Outras vezes o aparecimento, já vulgar, de um braço, de uma perna, a partir das caixas, evidenciando as palavras que falam pelo corpo, não resulta, uma vez que permanece uma imagem que não é agradável à vista. Mais feliz foi a utilização das caixas como gineceu, ornamentado de frutos, de onde as mulheres espreitavam furtivas as habilidades, um pouco tontas, que os homens exprimiam na rua. Houve momentos mais conseguidos, como o quadro em que Teresa Sobral vai dizendo o poema ajudada pelos sussurros dos outros actores. Outros houve que sujaram a palavra, como o momento em que Miguel Loureiro entra de cuecas em palco, detendo-se dentro de uma tina de água. A mesma tina que desde o princípio do espectáculo recebe o líquido de outra tina, numa metáfora muito óbvia de trocas de fluidos. A voz estridente e pouco trabalhada de Mariana Amaral também não ajudou à assunção da grandiloquência do poema nas alturas em que ela o interpretava. Nem o vestido curtíssimo florido alicerçado nas botas amarelas conseguiu disfarçar a voz que maculava a poesia. Outra cena que pode ser divertida mas que destrói a grandeza das palavras é aquela em que os actores assumem as caixas de cartão como chapéus, como se estivessem a desdenhar da coisa pensante que neles existe. O poema, como parte da sociedade de consumo, esvai-se no lixo reciclável.
A música em palco, como vai sendo habitual nos espectáculos de poesia e música, conseguia dar alguma da atmosfera transpirada pelo poema. Mas um poema erótico é sempre um poema erótico, e sensual, seja ele dito por homens vulgares a mulheres ou homens vulgares, por um sacerdote à sua divindade, por uma princesa ao príncipe, seu recente esposo. Há nele a magia que guarnece a sensualidade, porque a sensualidade não é mais que um estado de espírito. Neste caso, um estado de espírito criado pelo encantamento da palavra. O espectáculo de João Grosso retira a magia às palavras porque altera o clima de sensualidade que o poema exala por si mesmo. O Cântico dos cânticos não precisa de nenhuma encenação especial porque as palavras já são especiais. Apesar do profissionalismo dos actores que diziam e cantavam as palavras, o texto perdia-se naquela homenagem ao consumo de que era feita a cenografia de Rui Alexandre. Uma aposta perdida que sujou um dos textos mais puros da história da humanidade.

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