Thursday, August 16, 2007

Debaixo da cidade


Fios de luz, marcando uma tonalidade ténue pintam o fragmento do corpo. Uma cabeça, duas mãos, um tronco nu, pernas. Movimentam-se ao ritmo de uma escrita assumidamente Brechttiana, a partir do texto de Gonçalo M. Tavares A Colher de Samuel Beckett, publicado pela editora Campo das Letras.
Manuel Wiborg percorre a pequena divisória discorrendo sobre o corpo. Sobre as gavetas vazias da sua existência. Gavetas que permanecem vazias à custa do silêncio existencial imposto a si próprio. Um homem movimenta-se no mundo obscuro da sua existência solitária e misantrópica. Rejeita a pele, rejeita o toque, rejeita o contacto. Vai vivendo ao ritmo da sua respiração e dos seus medos. Os fios de luz acompanham esta fala entrecortada, iluminando o essencial. Apenas o essencial. Beckett disse um dia que a palavra escrita era "mancha desnecessária sobre o silêncio e o nada". Gonçalo M. Tavares assumiu a ideia de contenção da palavra no texto que serviu de base a este monólogo. “Não deixar que a luz entre e te ocupe. Rastejar debaixo da luz." Neste caso é a luz de Rui Alves que rasteja até ao actor, obrigando-o a rastejar debaixo da sua vida. Como uma persiana que deixa entrar apenas as frestas essenciais o actor passeia por entre a luz, detendo-se num monte de vidros. É preferível magoar-se a deixar-se apanhar por “eles”. Os outros que tentam violar o seu mundo, impondo a sua presença. A luz, obsessivamente bela, fere, sendo por isso castigada e reduzida ao mínimo possível. Desenha as três partes do texto criando ambiências diferentes. Uma linha oblíqua que atravessa a cena, corta-a violentamente em duas. Enche-se de vidros, reflectindo a luz à custa da destruição. O medo destrói e a personagem de Gonçalo M. Tavares tem um medo patológico da realidade que o rodeia. A claustrofobia como centro de todas as ansiedades imprime ao actor um movimento contínuo de recuo, de fuga perante a realidade. O cofre fechado do seu corpo, martirizado, rebola, rasteja, corre dentro de si próprio, agonizando perante a iminência do contacto com o outro. A obsessão patológica da fuga, do ser o buraco, em vez de se esconder dentro do buraco é a imagem da sociedade doente que se enquista em si própria. O medo que mata a generosidade. «Ser único, conquistar o centro. Tu tens um centro. Todos têm um centro. Esta casa tem um centro. Não te afastes do centro. Se for necessário rasteja, mas não te afastes. A tua cabeça é importante. A tua cabeça é o mais importante. (...) O que é necessário é uma síntese. Relembrar tudo. Meter tudo em ordem. O meu corpo não é suficiente. Um ficheiro. Organizar o passado. Preciso de fichas. Localizar os pensamentos. É tudo pele. Perdi-me na superfície. Atiraram-me para a superfície. É preciso quebrar. Partir a camada que não deixa. Temos de ir para baixo. Para o fundo. A pele é nojenta. A sujidade. Não basta desistir da água. É preciso desistir das ideias.»
Manuel Wiborg num conseguido diálogo com a luz defendeu de forma brilhante a obsessão de Gonçalo M. Tavares por Beckett. A cenografia depurada conseguiu reconstituir o riquíssimo simbolismo cénico, marcado pelos fragmentos de vidro. Estilhaços de um ser à procura de se completar. E como diz o texto: “É preciso chegar às coisas por baixo. São as coisas que te podem elevar. Não o contrário. Por baixo.” Por baixo, uma existência paralela, uma meta realidade que se constrói tendo por base o medo. Onde se ouve o coração, parando-o, para não ser ouvido. Onde de foge dos objectos, para que não haja qualquer tipo de interacção. A não ser castigando-se a si próprio, martirizando-se para poder suportar o peso da cidade, o peso da sua própria patologia. " (...) O meu corpo. Ainda posso explorar muito. Esta casa é enorme. Ainda não toquei em nada. É preciso tocar. O toque salva".
Manuel Wiborg revisita a escrita de Gonçalo M. Tavares. Já tinha experimentado, em 2002, no espaço d’a Capital a interpretação do texto O Homem ou é Tonto ou é Mulher, monólogo para um homem só. Sequência de 50 poemas em que um homem se interroga sobre o desejo, o amor, as relações com os outros, com o poder. Filosofia de sentimentos. O amor carnal, a atracção pelas mulheres foi o mote para uma reflexão ao vivo, sobre a essência do amor. A ironia e o humor, são uma constante no discurso, optimista, de quem quer viver e fazer viver os outros, de quem se quer mostrar, na sua totalidade aos outros.
Gonçalo M. Tavares diz a respeito da escrita de Beckett: “A escrita de Samuel Beckett agrada-me pela contenção, pela forma como ameaça continuar a falar, mas subitamente se cala. São assim as suas personagens. Quase sempre avançam parecendo à primeira não mais parar, mas param, e depois aceleram outra vez. É uma questão de ritmo, quase musical. É uma escrita que vive de uma certa contenção e dá força à arte de desapontar do leitor, de o frustrar: o leitor não recebe o final das frases que esperaria, e isso provoca a princípio estranheza. Uma estranheza que se torna a seguir estimulante; “falhar melhor” é um lema que quase dá para todas as vidas. Samuel Beckett faz anos e isso é óptimo.” Demos então os parabéns, não só a Beckett mas também a Gonçalo M. Tavares pela escrita, a Rui Alves pelo desenho de luz e ao actor completo que é Manuel Wiborg.

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