Thursday, August 16, 2007

O Eunuco de Inês de Castro


No âmbito do 4º Encontro de Teatro Ibérico, organizado pelo Teatro Garcia de Resende, de 1 a 9 de Dezembro de 2006, estreou O Eunuco de Inês de Castro, o último texto de Armando Nascimento Rosa. Mais um texto da nova geração de dramaturgos portugueses que traz uma lufada de ar fresco a um novo olhar sobre os mitos instalados no nosso imaginário. A não perder a reposição a partir de 19 de Janeiro.
Falar do último espectáculo de Armando Nascimento Rosa é, antes do mais, saudar o CENDREV por ousar pôr em cena uma voz politicamente incorrecta que toca dos mitos intocáveis que povoam a nossa memória. O mais paradigmático é o mito da rainha morta, Inês de Castro, símbolo incontornável do amor romântico e eterno. A visão crua de Armando Nascimento Rosa coloca Pedro e Inês no reino dos mortos, depois de toda a loucura perpetrada por Pedro após a morte da sua mulher. Supostamente Pedro e Inês estariam juntos por toda a eternidade… mas afinal não estão. Mesmo a eternidade não é tempo suficiente para absolver todas as culpas e todos os excessos cometidos numa existência vivida em desespero.
A cenografia, concebida por Acácio de Carvalho, é de uma beleza plástica estonteante. Há uma relação directa do país dos mortos com a Hélade fragmentada em milhentas ilhas. Se dúvida houvesse, seria retirada logo na primeira cena quando surge o primeiro funcionário da empresa Caronte e Filhos Ltª, interpretado por Figueira Cid, que detém o monopólio exclusivo dos transportes marítimos. Uma Veneza dos mortos cuja empresa de navegação recebe o óbolo em euromortos para que os seus funcionários possam ir ao teatro, a única ocupação que anima os fantasmas que habitam aquelas ilhas. É curiosa esta alusão tanto à cultura grega, como ao teatro, como se de uma circularidade se tratasse: a cultura grega como o sítio a que sempre se regressa e o teatro como a arte que anima os mortos.
A cena está rodeada pela rotunda negra, suspensa a cerca de um metro do chão, desocultando a passagem para o país dos mortos. Inês de Castro, interpretada por Maria Marrafa e Constança, interpretada por Isabel Bilou, surgem em cena através de uma coreografia comum. São amigas e confidentes neste lugar onde o ciúme deixa de ter razão de ser. Com a entrada das duas mulheres percebe-se que Inês não está com Pedro, interpretado por Rui Nuno, como nos tinha sido prometido em todos os anais e em todas as histórias. Inês despreza o Rei Cruel pelas atrocidades cometidas após a sua morte, muito particularmente a que foi cometida a Afonso Madeira, seu escudeiro. Assassinar os carrascos de Inês, tirar o coração pelas costas em nada se compara ao crime de castração cometido ao escudeiro por ciúmes. E aqui começa a incursão no domínio do intocável. Através de um registo da crónica de D. Pedro, escrita por Fernão Lopes pode ler-se: “E como quer que o El-Rei muito amasse, mais que se deve aqui de dizer, …”. Este parêntesis sugere-nos uma ambiguidade sexualmente incorrecta na pessoa de D. Pedro. A razão oficial dada ao crime de castração foi o facto do escudeiro ter dormido com uma mulher casada. A razão apontada nesse pequeno parêntesis reenvia-nos para um outro universo, dominado pelo ciúme. Inês sentiu-se traída com este castigo, pois era através de Afonso Madeira que, do além, enviava a Pedro todo o seu carinho. Pedro tinha acabado de cortar o último elo que o ligava a Inês. Jamais ela lhe iria perdoar um crime tão bárbaro. Entretanto o cronista, José Russo, surge na história como a encarnação futura de um repórter de guerra americano morto no Líbano. O repórter, ao contrário do que defendem os defensores das reencarnações, não se recorda das suas anteriores vidas, recusando mesmo a aceitar a ideia de ter sido cronista do Rei de Portugal. Porque terá sido que o autor considerou o repórter a única personagem passível de ter atravessado séculos? Teria sido para dar força à ideia de que aquilo que permanece da memória é o que se regista da história? De qualquer forma, o repórter reconhece-se na escrita e reassume a sua identidade de cronista da corte portuguesa.
Afonso Madeira, interpretado por Jorge Baião, quer refazer as coisas, repor a conveniência da história e unir novamente Pedro e Inês. Tenta comover Inês através do poderoso poder catártico do teatro, reproduzindo ao vivo a cena da discórdia. Nascimento Rosa constrói então uma cena de teatro dentro do teatro para despertar em Inês o reconhecimento que a purifique do ódio que tem a Pedro. Mas o mundo dos fantasmas é atemporal e Inês permanece irredutível. Apesar do “Complexo de Inês”, descoberto por Armando Nascimento Rosa e criado por D. Pedro, pelo facto de a ter coroado depois de morrer. Para sair deste impasse o cronista acena-lhes com a única arma redentora do país dos mortos: o teatro. Mestre Gil Vicente anda à procura de actores para fazer encenar uma nova versão de A Castro, de António Ferreira, logo seguida e Pedro o Cru, de António Patrício. As sombras dos heróis aceitam com entusiasmo e partem para uma digressão que passará por todas as ilhas: das venturosas às malditas. E é finalmente no palco que estes fantasmas redescobrem o sentido da eternidade.
A encenação de Paulo Lages é algo contida perante o texto de Armando Nascimento Rosa. O registo complexo e inteligente, que consegue cruzar diversos patamares espácio-temporais, atravessados pelo imaginário que vai da Antiguidade Clássica, da Idade Média à psicanálise exigia uma outra ousadia e um outro arrojo. Apesar de tudo, é um bom sinal quando alguém tem a coragem de assumir em cena a gagez de Pedro. Ainda que no teatro dentro do teatro. Como é que alguém “hediondamente gago”, como apontava igualmente Fernão Lopes, pode discorrer e passar pelo textos dramáticos, desde Pedro o Cru, de António Patrício, até Linda Inês, de Armando Martins Janeira pode passar pela figura de Pedro sem acusar essa marca tão pessoal com a sua crueldade? Os figurinos de Manuela Bronze eram a marca desse arrojo pedido pelo texto e a interpretação de Maria Marrafa dava vida ao cortejo de mortos-vivos.
Armando Nascimento Rosa continua a surpreender pelo cruzamento que a sua poética teatral assume, ao utilizar os arquétipos intocáveis da nossa identidade, colocando-os ao nível dos homens e das mulheres comuns. Com todas as grandezas e misérias inerentes ao ser humano. Este é um trabalho em que se descobre sempre mais alguma coisa de cada vez que a ele se assiste.

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