Olga Roriz teve estreia absoluta no Teatro Municipal de Faro com o espectáculo O Amor ao canto do Bar Vestido de Negro. Um exemplo de como a dança contemporânea em Portugal pode provocar uma autêntica suspensão de juízo que nos reconcilia com a vida.
Dia 14 de Outubro de 2004, mal o espectador entra no auditório do Teatro Municipal de Faro, o espectáculo começa a invadi-lo tal é a força da cenografia. O Amor ao canto de um Bar Vestido de Negro dá-se ao espectador através um cenário forte constituído por pedras brutas, símbolos de liberdade que não conheceram a profanação do ferro. A pedra, e toda a sua infinita significação simbólica aparece-nos assistindo ao desenrolar das paixões. No meio dos menires e das pedras redondas, símbolos dos princípios primordiais masculino e feminino, surgem duas figuras humanas: um homem e uma mulher, ao som do Adagietto de Mahler. Esse momento inicial marca o tom do espectáculo: irónico, apaixonado, pondo o dedo na ferida dos arrebatamentos passionais. A mulher misteriosa, coberta pelo véu da sensualidade pede água ao criado. A água é servida, bebida, no meio de uma sofisticação coberta de pequenos achaques. O desenvolvimento desta cena diverte-nos porque nos mostra com ironia a ambiguidade do estado de sofrimento, de uma paixão não resolvida. A água não chega e o criado tem de insuflar no copo um sopro de vida para dar ânimo à mulher de negro, que uma paixão mal resolvida quase desfez. No fim é levada nos braços do empregado transformado em cavaleiro andante e a vida continua sob a forma de uma mulher vestida de vermelho. E outra de laranja, e outra de púrpura. As cores exaltantes contrastando com o cinzento das pedras e o preto dos fatos convencionais dos homens. Há jogos de sedução, jogos onde alguém que quer ser encontrado se esconde entre as pedras fálicas, desde sempre símbolos de fertilidade. Uma fertilidade que se manifesta na urgência de dois corpos que se entregam frenética e violentamente, num fervor erótico que abala os espíritos mais austeros. Forte, de cortar a respiração, a cena em que os casais se despem e correm um para o outro, copulando apaixonadamente sob o olhar complacente das pedras. Dessas mesmas pedras capazes de se incendiarem com a energia criada pela paixão. Essas mesmas pedras, que, segundo a mitologia, conservam um odor humano e fazem a ligação entre os deuses e os homens.
Depois do frémito da paixão vem um segundo olhar. A dualidade masculino / feminino, sempre bem marcada, como aliás o é também em Pina Baush, mostra-nos a força e as fragilidades de cada princípio. O homem, com a sua massa muscular é impiedoso quando arrasta para longe a mulher que o deseja. A mulher, com uma perversidade que lhe é própria, expõe o homem despido e desamparado, ridículo e fragilizado, quando já não o quer. De mãos atadas e calças caídas aos pés, o homem abandonado chora pela sua inépcia de não saber lidar com os sentimentos, com a paixão. Depois é reabilitado pelo grupo que dança todo ao mesmo tempo, com a cumplicidade de amigos que se amam e se ajudam, mostrando que a vida também pode ser uma festa.
A segunda parte começa com um momento sublime, em que as pedras se iluminam por dentro. É como que uma retribuição do poder que os corpos lhes deram ao amarem-se entre elas. Num jogo de trocas, a luz marca a emanação de energia que flúi e ilumina a obscuridade quando a paixão ainda não é clara. Nesse jogo de luz, corpo e música, os bailarinos mostram essa incerteza que acompanha a paixão, numa complexidade aparentemente simples de movimentos de pessoas que estão num bar, trocando copos, gestos, mas não se entregam porque não têm a certeza de serem retribuídos. Enfim, todos estão marcados pela paixão, que vai direita ao coração, distinguindo-o de forma assinalável. Que se apaga superficialmente à flor da pele, mas fica indelével no sentimento. Alguém que se oferece para sentir um pouco de paixão, mesmo emprestada, alguém que sofre momentos de brutal abandono porque vê o seu outro eu momentâneo fugir, alguém que recupera a paixão e se envolve numa aura de felicidade, alguém que diz ao outro: espera-me, mesmo que eu saiba que sou eu que irei esperar por ti, são vários capítulos do jogo passional, que acaba em festa. Antes há a angústia, o medo da perda. O dar-se despida ao outro, sem nada a esconder, dizendo: “Não te esqueças de esperar por mim! Espera com toda a força. / Espera até a pedra amolecer e o Verão se tornar frio. / Espera até que as flores comecem a sorrir. Espera mesmo sabendo que não é de mim que esperas.(…) Faz desta espera uma mentira e nunca digas a verdade. /Espera por mim como se não soubesses que quem espera serei sempre eu. / Espera para que eu possa ainda esperar mesmo que já não queira. / Espera por ti para mim. / Espera a tua espera e espera.” Brutal e rude como as pedras que a envolviam a mulher, de saltos altos e peito nu, vai-se enrolando e desenrolando dando corpo à confusão de sentimentos que paira na sua cabeça. Como em todas as paixões, dá-se, anseia, deseja e sofre para logo a seguir amar com violência e sofrer com a insegurança própria do estado apaixonado. O final é reconfortante, abrindo-nos a esperança de um final feliz em que todos dançam em festa, recuperando o redemoinho dos sentidos quando se olha para a outra metade e se reconhece o brilho que se pensava perdido. Depois de tudo fica a grata sensação de percebermos que, afinal, a dança contemporânea ainda não morreu em Portugal.
A selecção musical que vai desde os românticos como Mahler ou Grieg, até à sensualidade do tango, Te Amare de Sílvio Rodriguez, passando por Kimmo Poshonen e Pink Martini mostrando a euforia, faz a síntese perfeita entre o estado de paixão e o corpo que o vive. O cenário, exuberante na sua força, dá-nos a dimensão eterna de algo que se julga fugaz mas que se vai redescobrindo em ciclos, como é a paixão. Os figurinos são o apontamento poético e sonhador, inseparável de Olga Roriz, que nos faz acreditar que as coisas bonitas da vida ainda não deixaram de existir.
Um espectáculo belíssimo, interpretado por Catarina Câmara, Maria Cerveira, Paulina Santos Félix Losano, Pedro Santiago Cal e Rui Pinto, que evidencia a marca singular de Olga Roriz, no auge da sua maturidade criativa.
Dia 14 de Outubro de 2004, mal o espectador entra no auditório do Teatro Municipal de Faro, o espectáculo começa a invadi-lo tal é a força da cenografia. O Amor ao canto de um Bar Vestido de Negro dá-se ao espectador através um cenário forte constituído por pedras brutas, símbolos de liberdade que não conheceram a profanação do ferro. A pedra, e toda a sua infinita significação simbólica aparece-nos assistindo ao desenrolar das paixões. No meio dos menires e das pedras redondas, símbolos dos princípios primordiais masculino e feminino, surgem duas figuras humanas: um homem e uma mulher, ao som do Adagietto de Mahler. Esse momento inicial marca o tom do espectáculo: irónico, apaixonado, pondo o dedo na ferida dos arrebatamentos passionais. A mulher misteriosa, coberta pelo véu da sensualidade pede água ao criado. A água é servida, bebida, no meio de uma sofisticação coberta de pequenos achaques. O desenvolvimento desta cena diverte-nos porque nos mostra com ironia a ambiguidade do estado de sofrimento, de uma paixão não resolvida. A água não chega e o criado tem de insuflar no copo um sopro de vida para dar ânimo à mulher de negro, que uma paixão mal resolvida quase desfez. No fim é levada nos braços do empregado transformado em cavaleiro andante e a vida continua sob a forma de uma mulher vestida de vermelho. E outra de laranja, e outra de púrpura. As cores exaltantes contrastando com o cinzento das pedras e o preto dos fatos convencionais dos homens. Há jogos de sedução, jogos onde alguém que quer ser encontrado se esconde entre as pedras fálicas, desde sempre símbolos de fertilidade. Uma fertilidade que se manifesta na urgência de dois corpos que se entregam frenética e violentamente, num fervor erótico que abala os espíritos mais austeros. Forte, de cortar a respiração, a cena em que os casais se despem e correm um para o outro, copulando apaixonadamente sob o olhar complacente das pedras. Dessas mesmas pedras capazes de se incendiarem com a energia criada pela paixão. Essas mesmas pedras, que, segundo a mitologia, conservam um odor humano e fazem a ligação entre os deuses e os homens.
Depois do frémito da paixão vem um segundo olhar. A dualidade masculino / feminino, sempre bem marcada, como aliás o é também em Pina Baush, mostra-nos a força e as fragilidades de cada princípio. O homem, com a sua massa muscular é impiedoso quando arrasta para longe a mulher que o deseja. A mulher, com uma perversidade que lhe é própria, expõe o homem despido e desamparado, ridículo e fragilizado, quando já não o quer. De mãos atadas e calças caídas aos pés, o homem abandonado chora pela sua inépcia de não saber lidar com os sentimentos, com a paixão. Depois é reabilitado pelo grupo que dança todo ao mesmo tempo, com a cumplicidade de amigos que se amam e se ajudam, mostrando que a vida também pode ser uma festa.
A segunda parte começa com um momento sublime, em que as pedras se iluminam por dentro. É como que uma retribuição do poder que os corpos lhes deram ao amarem-se entre elas. Num jogo de trocas, a luz marca a emanação de energia que flúi e ilumina a obscuridade quando a paixão ainda não é clara. Nesse jogo de luz, corpo e música, os bailarinos mostram essa incerteza que acompanha a paixão, numa complexidade aparentemente simples de movimentos de pessoas que estão num bar, trocando copos, gestos, mas não se entregam porque não têm a certeza de serem retribuídos. Enfim, todos estão marcados pela paixão, que vai direita ao coração, distinguindo-o de forma assinalável. Que se apaga superficialmente à flor da pele, mas fica indelével no sentimento. Alguém que se oferece para sentir um pouco de paixão, mesmo emprestada, alguém que sofre momentos de brutal abandono porque vê o seu outro eu momentâneo fugir, alguém que recupera a paixão e se envolve numa aura de felicidade, alguém que diz ao outro: espera-me, mesmo que eu saiba que sou eu que irei esperar por ti, são vários capítulos do jogo passional, que acaba em festa. Antes há a angústia, o medo da perda. O dar-se despida ao outro, sem nada a esconder, dizendo: “Não te esqueças de esperar por mim! Espera com toda a força. / Espera até a pedra amolecer e o Verão se tornar frio. / Espera até que as flores comecem a sorrir. Espera mesmo sabendo que não é de mim que esperas.(…) Faz desta espera uma mentira e nunca digas a verdade. /Espera por mim como se não soubesses que quem espera serei sempre eu. / Espera para que eu possa ainda esperar mesmo que já não queira. / Espera por ti para mim. / Espera a tua espera e espera.” Brutal e rude como as pedras que a envolviam a mulher, de saltos altos e peito nu, vai-se enrolando e desenrolando dando corpo à confusão de sentimentos que paira na sua cabeça. Como em todas as paixões, dá-se, anseia, deseja e sofre para logo a seguir amar com violência e sofrer com a insegurança própria do estado apaixonado. O final é reconfortante, abrindo-nos a esperança de um final feliz em que todos dançam em festa, recuperando o redemoinho dos sentidos quando se olha para a outra metade e se reconhece o brilho que se pensava perdido. Depois de tudo fica a grata sensação de percebermos que, afinal, a dança contemporânea ainda não morreu em Portugal.
A selecção musical que vai desde os românticos como Mahler ou Grieg, até à sensualidade do tango, Te Amare de Sílvio Rodriguez, passando por Kimmo Poshonen e Pink Martini mostrando a euforia, faz a síntese perfeita entre o estado de paixão e o corpo que o vive. O cenário, exuberante na sua força, dá-nos a dimensão eterna de algo que se julga fugaz mas que se vai redescobrindo em ciclos, como é a paixão. Os figurinos são o apontamento poético e sonhador, inseparável de Olga Roriz, que nos faz acreditar que as coisas bonitas da vida ainda não deixaram de existir.
Um espectáculo belíssimo, interpretado por Catarina Câmara, Maria Cerveira, Paulina Santos Félix Losano, Pedro Santiago Cal e Rui Pinto, que evidencia a marca singular de Olga Roriz, no auge da sua maturidade criativa.
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