Com 10 alunos da Escola EB 2,3 João da Rosa de Olhão, Clara Andermatt criou um espectáculo que junta em palco uma banda de música, actores e bailarinos. O Grito do Peixe é uma homenagem às gentes de Olhão feita através do olhar de uma das mais paradigmáticas
O Grito do Peixe é talvez um dos mais tocantes trabalhos criados sob a égide de Faro Capital da Cultura. Um trabalho que alia profissionais das artes do espectáculo, como bailarinos e músicos, a alunos de uma escola básica sem qualquer tipo de formação é, à partida, um desafio de louvar. Quando se alia a esse nobre desafio a genialidade da criação de Clara Andermatt o resultado só poderia ter sido aquele que o público pôde apreciar nos dias 16, 17 e 18 no Teatro Municipal de Faro. Uma criação concebida em vários planos e vários percursos estéticos, aliou de uma forma original e muito bem conseguida as diferentes linguagens dos diferentes suportes artísticos com crianças que nunca tinham tido contacto com essa forma de trabalho. O desafio foi aceite por 10 jovens olhanenses, Ana Filipa Meyners, André Tomás, Dora Sousa, Iúri Feliciano, Janina Santos, Joana Belmiro, João Efigénia, Miguel Pereira, Oleksandra Balytska e Pedro Correia, que se mostraram em palco com a segurança e a qualidade de profissionais. Depois de um casting feito na escola que frequentavam, estes alunos trabalharam juntamente com bailarinos e músicos profissionais durante três meses. E de facto, aquelas dez crianças dançaram, cantaram, transmitiram emoções ao público como se sempre tivessem estado em contacto com aquele mundo. O Grito do Peixe, metáfora do povo de Olhão, é o salto sufocante que os habitantes daquela terra têm de sofrer para irem para uma outra dimensão, para obterem o equilíbrio entre os outros que não partilham aquele espaço nem aquele contexto. Nesse salto sufocante em que se pode perder a respiração é possível perder a vida ou, o que é quase o mesmo, a auto-estima. O grito desencadeia a passagem de um estado semelhante ao limbo daimónico para o caos criador. Dentro do caos há a partilha dos corpos num entrosamento belíssimo vivido entre os cinco bailarinos e colaboradores profissionais - Joana Bergano, Pedro Ramos, Romeu Runa, Samuel Louwyck, Victor Hugo Pontes – e os dez alunos escolhidos para este trabalho. O puxar das cordas da guitarra evoca uma vibração adicional da alma que ocorre quando uma emoção forte a percorre. O canto da menina, acompanhado da harpa e recuperado no final, a que a coreógrafa junta a sua característica voz, é um hino à vida e uma homenagem às gentes de Olhão. A banda com duas baterias também se degladia quando os moços de Olhão querem resolver as questões olhos nos olhos, mano a mano, com a atitude esperada. Mas a luta dá lugar ao canto e o canto une-se ao corpo, constituído por múltiplos corpos ligados em cardume, na ânsia de sobreviver. Com humor, algum sarcasmo, este trabalho brinca com os ditos populares de Olhão e toca nas feridas de quem é periférico e não quer mudar. Por ti…tudo. Por ti… nada. Por ti… não mudo. O final, em que o fumo dá uma ideia de dois planos distintos, é apoteótico, fazendo-nos sonhar com o paraíso que fica no fim do mundo. As andas provocam um desequilíbrio precário que não alteram a confiança absoluta que os seus heróis depositam nos amigos. A queda para trás, mergulho nas águas, voo para o abismo é amparado pelas mãos seguras dos amigos que não falham.
A oportunidade dada a estas crianças de trabalhar com estes profissionais e de apresentarem este trabalho em espaços geralmente só oferecidos aos melhores, como o Centro Cultural de Belém é uma dádiva que eles guardarão para sempre. Com desenho de luz sublime de Rui Horta, composição musical de João Lucas, este trabalho foi um autêntico milagre que elevou crianças de Olhão a artistas que trabalharam com rigor e profissionalismo. Isto é, verdadeiramente, trabalhar para educar públicos, trabalhar para ajudar a criar as tais elites de que o mundo também precisa para avançar.
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
No comments:
Post a Comment