Dias 25 e 26 de Março de 2005 o CAPa foi pequeno para todos aqueles que queriam ter o privilégio de assistir a Engame Revisitado: um espectáculo encenado por Bruno Bravo, a partir do texto de Beckett Engame com Diogo Infante, a revisitar a personagem de Hamm, anteriormente interpretada por João Lagarto, Miguel Seabra, Gonçalo Amorim e Raquel Dias.
Segundo o argumento cedido pela produção, o espectáculo é acerca de dois homens “confinados a um espaço fechado apenas com duas pequenas janelas que dão para um mundo de desolação onde o mar e a terra são uma única cor cinzenta. Quatro personagens procuram o fim. Hamm, o patriarca, meio Hamlet, impossibilitado de ver e de se levantar, comanda o patético e trágico universo da peça e simboliza, segundo Beckett, um mau jogador neste sórdido jogo existencial. Clov, meio escravo, meio filho de Hamm, ameaça com frequência que se vai embora. Mas a peça é ambígua entre o poder e a vontade, e liga as duas através de uma relação de interdependência, de sadismo e de banalidade. Nagg e Nell, os pais de Hamm, estão presos à memória de um tempo que se supõe ter existido outrora, em relação a um outro que se mantém imutável e que parece estar sempre aquém do fim”. Perante esta nota podemos perguntar-nos qual o sentido de apresentar um espectáculo tendo por base um argumento em que, à semelhança de um jogo viciado, todos os participantes reconhecem a morte como resultado final não importando a táctica do jogador. Pode-se encontrar essa relação do xadrez viciado com Engame, como alguns estudiosos de Beckett consideram ter dado origem a este texto. Mas recuperar para o séc. XXI um espectáculo a partir de um texto de Beckett não necessita de grandes justificações dramatúrgicas, uma vez que o ambiente que influenciou pensadores como Sartre, Camus ou Simone de Beauvoir, acentuando um sentimento geral de desengano, de náusea, de angústia face ao absurdo da existência humana, permanece. Neste texto de Beckett revemos de uma forma clara a dialéctica hegeliana do senhor e do escravo. Na insustentável tragédia da miséria humana, simbolizada por Clov, o escravo, torna-se inevitável a última das decisões: a revolução. O pensamento torna-se melancólico, voltando-se o amo para si próprio, voltando-se contra si próprio, encarnado neste caso pela personagem de Hamm. Resta-lhe aceitá-la numa passividade radical, cujo contrário não é a actividade, mas o controlo: antecipar, preparar, programar, avaliar. A superação dessa aceitação passiva encontra-se na síntese operada pelo devir, a partir do qual a ordem é reposta com sentido. Mas aqui a ordem é reposta através da lógica do absurdo, pois tudo isto vai agravando sempre mais os nossos males, reinventando uma nova forma de superação: matéria cega e inválida, formas espectrais, espíritos e corpos, todos em conflito à procura da sua própria superação. Tristes personagens que já encontraram o absurdo que nos rodeia e que ainda não aceitamos. Rimo-nos das situações e dos diálogos porque conseguimos estabelecer o distanciamento necessário à apreciação de uma obra. Mas ao mesmo tempo também nos revemos no absurdo que reconhecemos ser o nosso. Adorno dizia que “há algo de verdade na trivialidade da alegria da arte. Se ela não fosse, sob alguma mediação qualquer, fonte de alegria para muitos homens, não teria conseguido sobreviver na mera existência que contradiz e a que opõe resistência. Mas isto não lhe é algo do exterior e, sim, uma parte integrante de sua própria definição”. De facto, esta teoria de Adorno verifica-se neste espectáculo pois o riso que ele por vezes nos provoca provém do seu interior e permanece vivo até nós porque ainda hoje todo aquele absurdo faz sentido. Dramaturgia do negativo, como alguns teóricos consideraram a obra de Beckett, não deixa de se superar a si mesma como portadora de uma imagem de abandono e de não-sentido, que para além de ser percebida como meditação amarga, é também associada à imagem de euforia na sociedade actual, concorrendo para a sua própria libertação pois, ainda segundo Adorno, “A arte incorpora algo como liberdade no seio da não-liberdade”. Neste caso, esclarece no seio do obscuro que se confronta constantemente com a morte. A morte, o outro lado escondido da vida que a interpela e que lhe dá um sentido ao inscrevê-la na temporalidade consignada pela finitude. É a partir desta consciência que o humano acede ao humano, sendo capaz de se figurar e de se pensar como ser na história cuja acção tem um sentido transformador quer no plano colectivo quer no individual. Ser capaz de colocar no plano das imagens esta relação decisiva e as formas da sua consciência foi, desde sempre, a razão de ser da própria arte. Por isso o espectáculo de Bruno Bravo pode assumir-se como um espectáculo de libertação, uma vez que nos fez revisitar o sentido da nossa existência. Uma boa direcção de actores apurou o trabalho convincente que Diogo Infante e Miguel Seabra à partida já nos faziam acreditar que teriam. Gonçalo Amorim e Raquel Dias, os progenitores encerrados nos caixotes que mantêm a invalidez à distância decente do abandono e da tirania, impressionam pelo confronto directo com o Outro que queremos ignorar. Dois seres que se amam e superam a adversidade com a ternura desconcertante que sentem um pelo outro. Como se navegassem num universo paralelo ao mundo desprovido de humanidade, reescrito por Beckett. Uma encenação limpa que seguiu a partitura didascaliana de Beckett. O jogo acabou e a humanidade desapareceu imersa no vórtice causado pelo seu egoísmo. Nós aplaudimos porque ainda queremos acreditar que nos podemos salvar do turbilhão no qual já estamos absortos. E dando voz a Beckett, recuperada dos seus escritos Textos para nada “Apenas as palavras quebram o silêncio, todos os outros sons cessaram. Se eu estivesse silencioso, não ouviria nada. Mas se eu me mantivesse silencioso, os outros sons recomeçariam, aqueles a que as palavras me tornaram surdo, ou que realmente cessaram.” Antes de recomeçarem os outros sons, quebremos então o silêncio e aplaudamos esta produção: Bravo.
Segundo o argumento cedido pela produção, o espectáculo é acerca de dois homens “confinados a um espaço fechado apenas com duas pequenas janelas que dão para um mundo de desolação onde o mar e a terra são uma única cor cinzenta. Quatro personagens procuram o fim. Hamm, o patriarca, meio Hamlet, impossibilitado de ver e de se levantar, comanda o patético e trágico universo da peça e simboliza, segundo Beckett, um mau jogador neste sórdido jogo existencial. Clov, meio escravo, meio filho de Hamm, ameaça com frequência que se vai embora. Mas a peça é ambígua entre o poder e a vontade, e liga as duas através de uma relação de interdependência, de sadismo e de banalidade. Nagg e Nell, os pais de Hamm, estão presos à memória de um tempo que se supõe ter existido outrora, em relação a um outro que se mantém imutável e que parece estar sempre aquém do fim”. Perante esta nota podemos perguntar-nos qual o sentido de apresentar um espectáculo tendo por base um argumento em que, à semelhança de um jogo viciado, todos os participantes reconhecem a morte como resultado final não importando a táctica do jogador. Pode-se encontrar essa relação do xadrez viciado com Engame, como alguns estudiosos de Beckett consideram ter dado origem a este texto. Mas recuperar para o séc. XXI um espectáculo a partir de um texto de Beckett não necessita de grandes justificações dramatúrgicas, uma vez que o ambiente que influenciou pensadores como Sartre, Camus ou Simone de Beauvoir, acentuando um sentimento geral de desengano, de náusea, de angústia face ao absurdo da existência humana, permanece. Neste texto de Beckett revemos de uma forma clara a dialéctica hegeliana do senhor e do escravo. Na insustentável tragédia da miséria humana, simbolizada por Clov, o escravo, torna-se inevitável a última das decisões: a revolução. O pensamento torna-se melancólico, voltando-se o amo para si próprio, voltando-se contra si próprio, encarnado neste caso pela personagem de Hamm. Resta-lhe aceitá-la numa passividade radical, cujo contrário não é a actividade, mas o controlo: antecipar, preparar, programar, avaliar. A superação dessa aceitação passiva encontra-se na síntese operada pelo devir, a partir do qual a ordem é reposta com sentido. Mas aqui a ordem é reposta através da lógica do absurdo, pois tudo isto vai agravando sempre mais os nossos males, reinventando uma nova forma de superação: matéria cega e inválida, formas espectrais, espíritos e corpos, todos em conflito à procura da sua própria superação. Tristes personagens que já encontraram o absurdo que nos rodeia e que ainda não aceitamos. Rimo-nos das situações e dos diálogos porque conseguimos estabelecer o distanciamento necessário à apreciação de uma obra. Mas ao mesmo tempo também nos revemos no absurdo que reconhecemos ser o nosso. Adorno dizia que “há algo de verdade na trivialidade da alegria da arte. Se ela não fosse, sob alguma mediação qualquer, fonte de alegria para muitos homens, não teria conseguido sobreviver na mera existência que contradiz e a que opõe resistência. Mas isto não lhe é algo do exterior e, sim, uma parte integrante de sua própria definição”. De facto, esta teoria de Adorno verifica-se neste espectáculo pois o riso que ele por vezes nos provoca provém do seu interior e permanece vivo até nós porque ainda hoje todo aquele absurdo faz sentido. Dramaturgia do negativo, como alguns teóricos consideraram a obra de Beckett, não deixa de se superar a si mesma como portadora de uma imagem de abandono e de não-sentido, que para além de ser percebida como meditação amarga, é também associada à imagem de euforia na sociedade actual, concorrendo para a sua própria libertação pois, ainda segundo Adorno, “A arte incorpora algo como liberdade no seio da não-liberdade”. Neste caso, esclarece no seio do obscuro que se confronta constantemente com a morte. A morte, o outro lado escondido da vida que a interpela e que lhe dá um sentido ao inscrevê-la na temporalidade consignada pela finitude. É a partir desta consciência que o humano acede ao humano, sendo capaz de se figurar e de se pensar como ser na história cuja acção tem um sentido transformador quer no plano colectivo quer no individual. Ser capaz de colocar no plano das imagens esta relação decisiva e as formas da sua consciência foi, desde sempre, a razão de ser da própria arte. Por isso o espectáculo de Bruno Bravo pode assumir-se como um espectáculo de libertação, uma vez que nos fez revisitar o sentido da nossa existência. Uma boa direcção de actores apurou o trabalho convincente que Diogo Infante e Miguel Seabra à partida já nos faziam acreditar que teriam. Gonçalo Amorim e Raquel Dias, os progenitores encerrados nos caixotes que mantêm a invalidez à distância decente do abandono e da tirania, impressionam pelo confronto directo com o Outro que queremos ignorar. Dois seres que se amam e superam a adversidade com a ternura desconcertante que sentem um pelo outro. Como se navegassem num universo paralelo ao mundo desprovido de humanidade, reescrito por Beckett. Uma encenação limpa que seguiu a partitura didascaliana de Beckett. O jogo acabou e a humanidade desapareceu imersa no vórtice causado pelo seu egoísmo. Nós aplaudimos porque ainda queremos acreditar que nos podemos salvar do turbilhão no qual já estamos absortos. E dando voz a Beckett, recuperada dos seus escritos Textos para nada “Apenas as palavras quebram o silêncio, todos os outros sons cessaram. Se eu estivesse silencioso, não ouviria nada. Mas se eu me mantivesse silencioso, os outros sons recomeçariam, aqueles a que as palavras me tornaram surdo, ou que realmente cessaram.” Antes de recomeçarem os outros sons, quebremos então o silêncio e aplaudamos esta produção: Bravo.
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