Thursday, August 16, 2007

O poder de Vassilissa


Falar da morte da mãe, do casamento do pai com uma madrasta feia e má que tem duas filhas feias e más, é uma estrutura recorrente de conto popular. A maneira como essas histórias são contadas é que marcam toda a diferença. Vassilissa é a história de uma menina a quem a morre a mãe e que tem de passar pela provação de se sujeitar aos caprichos de uma madrasta. Mas se a estrutura do conto é habitual, tudo nesta encenação, trazida pelo grupo O Bando pela segunda vez a Faro, é diferente. O cenário, desprovido de muitos ornamentos, é marcado por um círculo vermelho que define a linha imaginária da cena. À volta do círculo foram dispostos bancos em anfiteatro preparados para as crianças. Como cenário, uma árvore, uma cadeira e uma parede com o fogo desenhado. É neste cenário depurado que a magia acontece. Ao princípio, Ana Brandão faz umas perguntas estranhas e espera pelas respostas surpreendentes das crianças. “O que é um segredo?” “O que é a memória?”, ou “Quem é a mãe do fogo?”. As crianças, instintivas, respondem com a deliciosa espontaneidade de que são detentoras. É neste jogo que Ana Brandão descobre a surpresa do espectáculo: a protagonista. Dentre o público há sempre uma menina que é escolhida para representar a história que foi contada. Uma menina de lenço vermelho, bibe e uma boneca no bolso. A boneca, dada pela mãe, ajuda-a em todas as tarefas, dando-lhe a força que precisa para as cumprir. Quando a menina é escolhida e a actriz lhe põe o lenço vermelho deixa de ser a menina e passa a ser Vassilissa., a menina que tem de ir a casa da bruxa buscar o fogo que a madrasta apagou. Ana Brandão teve o cuidado de nos dizer que a bruxa lhe lembrava a sua avó, para não associarmos aquela mulher a uma imagem terrível que come as crianças, como em Hansel e Gretel. A menina avança com confiança e tem então de cumprir tarefas hercúleas, para o seu tamanho, como lavar as cuecas da bruxa, cozinhar para ela e arrumar-lhe a casa. Vassilissa cumpre tudo direitinho, com a convicção e a inépcia próprias de uma menina de seis anos. Na casa da bruxa ela descobre o que é o fogo, o que é o tempo, e no fim até lhe consegue dar um beijo, pois conseguiu o fogo com recompensa por todos os seus trabalhos. No regresso a casa, o fogo regenerador purifica o mal e a ordem é reposta. Com esta solução evita-se o perigo em que se cai vulgarmente de termos um adulto a interpretar uma criança, e que, se não for bem feito, não resulta. Existe também o recurso ao objecto mágico, neste caso, a boneca, que funciona como alter ego da mãe, uma protectora voz interior que dá ânimo para a vida. O espectáculo, através da música, da expressão de Ana Brandão e da criança, devolve-nos todo o imaginário que o mundo infantil tem. E que não precisa de muitos objectos para que a magia aconteça. Vassilissa corre a apanhar ovos imaginários pela cena, pelas cabeças dos meninos, salta a uma árvore imaginária para retirar o ovo do ninho e cozinha-o na tampa da panela. A criança acredita, faz, e todos nós acreditamos. É esta a magia deste espectáculo e de qualquer espectáculo que tenha como alvo o público infantil. Com um fundo moral tradicional, a lição que nos fica é a da preserverança e da capacidade de acreditar que temos de ter de que vamos conseguir quando empreendemos uma tarefa, por mais difícil que nos pareça. Teatro verdadeiramente formativo, Vassilissa é uma história bem contada para o público infantil e uma lição para professores, educadores e todos os que trabalham com crianças.

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