Thursday, August 16, 2007

O primeiro


É sempre bom recebermos como presente um leque de actores com um trabalho renovado e consistente. Os actores continuam detentores de um profissionalismo quase irrepreensível, trabalhando sem rede num cenário depurado. Uma boa direcção, sim senhora, parabéns. De referir ainda o bonito jogo corporal e coreográfico entre as personagens.
Desta vez a ACTA escolheu um texto de Israel Horovitz: O Primeiro. Um texto que nos apresenta cinco personagens obcecadas por serem o primeiro, o chefe, o patrão, pululando atrás de uma linha branca que marca o limite para o absurdo. Até aqui bastante tentador. Lembramo-nos de repente de Ionesco, dos textos em que nos obriga a ver o mundo virado do avesso dando de caras com o nosso próprio absurdo. Sorrimos entusiasmados na cadeira, que desculpamos ser desconfortável. Avançamos mais um bocadinho e vemos as previsíveis metáforas de bonecos que poderão, eventualmente, retratar alguns paradigmas comportamentais da nossa sociedade; Flemming, o cauteloso obcessivo, daqueles que quando sai de casa tira logo as moedinhas para a portagem e anda sempre munido da sua cadeirinha para as bichas das finanças. Foi interpretado por Mário Spencer, gerindo na perfeição o controlo e a sua perda com todo o rigor de um excelente actor; Stephen, o pseudo intelectual que se julga mais inteligente que os outros à custa de recitar febrilmente os clássicos. Seria, no entanto, necessária aquela carga emocional quase rondando o over-acting protagonizada por João Pedro Naylor? Provavelmente uma personagem refinada, eloquente e perversa como Stephen deveria ter mais controlo e rigor; Dollan, o rufião malandro que, com falinhas mansas, tenta dar o golpe pela calada está assegurado por Pedro Guerreiro Ramos, surpreendente na sua divertidíssima personagem do engatatão e gingão de bairro cheio de esquemas; Molly, a insinuante mulher que sobe na vida à custa dos seus atributos físicos não conseguiu, apesar do jogo cénico equilibrado e dos bonitos apontamentos de dança, iluminar a apagada personagem que Glória Fernandes interpreta, injustamente castigada pelo texto; Finalmente Arnall, o seu marido, que tudo consente a fim de com isso ganhar algum proveito. Atrevo-me mesmo a dirigir uma palavra de destaque para Jorge Soares que, pela primeira vez, fugiu ao seu registo a que nos habituou como Teixeira Gomes, ainda nas Ideias do Levante. Bravo.
Apresentados os ingredientes, como cozinhou Horovitz o suculento caldo? Temperou-o em apetecíveis jogos de linguagem entre as personagens? Apimentou-o com deliciosos subentendidos? Apurou-o com um subtil creme dramatúrgico? Nada disso. Cozeu-o simplesmente em lume brando atirando displicentemente os quatro homens para dentro do texto mexendo-os com a personagem feminina. Simples? Excessivamente. Perigoso? Demasiado. Perigoso, não porque mexa com as consciências do que quer que seja. Perigoso porque continuamos a rir e a aceitar que se exponha a mulher a um lugar que ela já não ocupa mas de que continua a ser acusada. Ou seja, a de se deitar com quem quer que seja para conseguir proveitos disso. No espectáculo vemos as personagens masculinas a utilizarem o seu génio para a estratégia do golpe, tentando ficar em primeiro. A mulher é a personagem que, fria e calculista, decide deitar-se com todos para alcançar o primeiro lugar. É perigoso porque a Vox populis continua a apontar as mulheres que conseguem lugares cimeiros ou de destaque como fruto, não do seu engenho e arte, mas dos seus maiores ou menores pruridos em deitar-se com a pessoa certa. É tempo de acabar com esta visão misógina e deturpada da realidade. E se é verdade que a maioria do público da ACTA é feminino, seria talvez interessante que isso pesasse nas decisões da direcção artística. Lembramo-nos de Mulher, Mulheres, onde as mulheres saíam emocionadas com um olhar de agradecimento. Lembramo-nos desse magnífico A Baronesa e a Porca, com que Isabel Pereira nos presenteou. Brilhante! Não faz sentido esta quebra no gosto apurado e requintado com que a ACTA nos tem habituado. À minha volta observava as mulheres que, com sorriso amarelo, seguiam as peripécias de Molly. Algumas abanavam a cabeça com desagrado. Outras baixavam-na evitando ver mais. No final os comentários eram positivos com um senão: “se não fosse o texto...” . E lá saímos do teatro com aquela amargura de, mais uma vez, se brincar com algo que nunca teve graça, e que hoje em dia já não faz sentido. Será isto formação de públicos? Quando nos presenteará a ACTA com heroínas em que nós, mulheres, nos voltemos a reconhecer e a emocionar? Boas actrizes com vontade de trabalhar é o que não falta. Um bom tema para a ACTA reflectir quando a direcção artística determinar as suas linhas de acção.

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