Não há fome que não dê em fartura. A comprovar este dito popular aí está o dia 27 de Março, dia de todas as estreias, de todas as reposições, de todos os happenings. No Algarve o Dia Mundial do Teatro de 2004 celebrou-se de uma ponta a outra, deixando os amantes desta arte a desejarem tornar-se fragmento, para terem a possibilidade de assistir a tudo. Porque o ser humano, guloso por natureza, é ávido. E, se essa avidez, tem a ver com a cultura, torna-se um monstro insaciável, que se alimenta de si próprio. Pena é que as programações, muitas vezes, não dêem oportunidade a que os espectáculos fiquem mais que um dia na região.
Chapitô em Lagos, ACTA em Portimão, APARTE em Silves, Grupo de teatro Lethes em Lagoa, Teatro Aberto em Albufeira, Companhia de Teatro de Almada em Faro, Bica Teatro em Loulé, Fech’Ópano em Vila Real de Santo António. É muito para uma pessoa só. É pena que as companhias de teatro, que nestas efemérides nos vêm visitar - muitas delas referências importantes para o público algarvio - não se deixem ficar mais que um, dois dias na região, a fim de poderem saciar o apetite devorador que o teatro sempre cria.
A minha escolha, difícil, muito difícil, foi para o Teatro Aberto, desde sempre um dos meus grupos de referência. Desta vez, e de uma forma inédita, trouxe a Albufeira a estreia do seu espectáculo: A Forma das Coisas, do dramaturgo norte-americano Neil LaBute.
Chegada ao auditório de Albufeira, qual não é o meu espanto quando o encontro preparado para um espectáculo de teatro: sem aquela estrutura horrenda que habitualmente se encontra a meio da plateia, quando se vai assistir a qualquer evento que precise de projectores direccionados. O palco, impecável, sem panejamentos que possam sujar a cenografia, duas torres num sítio onde existiam cadeiras e, no palco, uma cenografia que constava de um painel branco e uma estátua branca de um qualquer deus grego, com uma protecção, igualmente branca, à sua volta. Ia ver um espectáculo baseado no texto de Neil LaBute, A Forma das Coisas, com encenação de João Lourenço e dramaturgia de Vera San-Payo Lemos. O espectáculo começa com Evelyn, uma estudante irreverente, que se aproxima demasiado da estátua, exposta num museu. Ultrapassa um limite. Essa estudante (Sofia de Portugal) é confrontada com Adam, o vigilante, (Philippe Leroux) que lhe aponta as regras do funcionamento do museu. Ela confronta-o com a transgressão. Qual o preço por se ter ultrapassado os limites? Quem a irá punir? Este, no fundo, é o mote que dá vida ao espectáculo. Qual o limite para as relações humanas? Até onde é legítimo utilizar material humano nas nossas criações? Qual a linha que divide a criação artística de uma utilização “vampiresca” do outro? O texto fala de relações humanas e da crueldade que é possível existir entre todos nós. Da capacidade que temos de, muito civilizadamente, transgredirmos o limite do respeito pela pessoa humana. Com um final surpreendente, o texto evolui até ao limite da crueldade, apontando para uma parábola a que se alude no princípio. Se alguém destruiu uma obra de arte, é dever de todo o artista melhorá-la. Uma tomada de posição sem olhar a meios, nem que seja redesenhar uma estátua de um deus grego. A cenografia, monocromática, evidencia a riqueza de diferentes texturas cromáticas que as personagens vão adquirindo ao longo do espectáculo. Evelyn e Adam aproximam-se. Saem juntos, vivem juntos. Reiventando a rotina e sendo genuinamente criativos, fazem-nos acreditar que têm tudo para serem felizes. O outro casal, protagonizado por Joana Faria e Vítor d’Andrade, com umas interpretações mais contidas, são o contraponto. Paradigma de uma sociedade materialista, que faz tudo para acreditar que tem de ser feliz. Um texto magnífico, terrivelmente verdadeiro, onde se realçam as interpretações de Sofia de Portugal e Philippe Leroux.. Um desenho de luz apurado, que ajuda a manter o ritmo alucinante do espectáculo, a que a banda sonora faz justiça. Um espectáculo com um texto que provoca a reflexão e que, quanto mais não fosse, por isso, se recomenda, agora de volta ao fantástico espaço da Praça de Espanha.
Foi muito bom a câmara de Albufeira ter trazido ao Algarve um espectáculo do Teatro Aberto, assim como a ACTA, como companhia profissional de mérito reconhecido, é convidada amiúde para actuar e estrear espectáculos fora do Algarve. É importante trabalhar para a descentralização cultural, contribuindo, assim, para uma rede dinâmica de espectáculos no nosso país. Ficou o contentamento de ver a disponibilidade e a vontade política de, a partir de agora, transformar a sala quando é necessário assistir a um espectáculo de teatro. Seja ele de Lisboa, do Porto ou de Albufeira. E já sabemos também que, ao invés da grotesca barra a meio da plateia, que incomoda sobremaneira o espectador, se podem retirar cadeiras para colocar as torres de iluminação.
Para grande estupefacção do auditório, o presidente da câmara, no fim do espectáculo, parece ter dito aquele tinha sido o primeiro espectáculo a estrear em Albufeira no Dia Mundial do Teatro. Seria mesmo isso que queria dizer? Teria sido um lapso, aceitável pela emoção de se ter assistido a um magnífico trabalho? A ser verdade seria extremamente injusto para o Grupo Cénico 4 Ventos, sedeado em Albufeira, há vários anos a contribuir para a dinamização cultural do concelho e da região, dentro da sua linha séria de teatro não profissional, e que tem sistematicamente estreado os seus trabalhos naquele auditório no Dia Mundial do Teatro. Não foi decerto aquilo que o edil quis dizer, porque se o fosse, para todos aqueles que trabalham em prol da cultura na região, ficaria a sensação de que todo o trabalho árduo dos actores e técnicos, profissionais e não profissionais, tinha sido em vão. E não vamos acreditar que qualquer trabalho que venha de fora da região, bom ou mau, não é isso que está em causa, possa ofuscar tudo aquilo que os que trabalham com seriedade no Algarve têm vindo a fazer. O que está em causa é que no Algarve, também se fazem muitos e bons trabalhos. Que o diga quem viu o Calígula, da ACTA, considerado por vários críticos como o melhor trabalho de encenação desse texto de Camus, até então feito no nosso país. Que o diga quem viu em 1999 A Cantora Careca, de Ionesco, levado a cena pelo Grupo Cénico 4 Ventos. Só precisamos dos meios, porque milagres já os fazemos. Valorizemos a arte, sim. Tragamos espectáculos de todo o lado. E dignifiquemos o trabalho dos que por cá, contra tudo e contra todos, conseguem fazer do seu dia a dia um milagre.
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
No comments:
Post a Comment