Há espectáculos que não se compreendem vindos das companhias que vêm. Foi o caso de A Purga do Bebé, espectáculo trazido a Faro pela Companhia de Teatro de Almada. Um lamentável equívoco que poderia ser evitado se, por um lado, os programadores vissem previamente os espectáculos que trazem e se, por outro, as grandes companhias de teatro usassem de facto a responsabilidade que lhes é devida: formar os públicos.
Quem tivesse entrado no Teatro Lethes na noite de quatro ou cinco de Fevereiro e não soubesse qual a companhia de teatro que estava a apresentar o espectáculo de teatro, decerto pensaria em qualquer grupo de teatro amador, dirigido por um ensaiador voluntarioso e cheio de boa vontade, que ali estava a dar aquilo que de melhor era capaz. Se alguém lhe sussurrasse ao ouvido que o que estava a ver era da responsabilidade da Companhia de Teatro de Almada, decerto soltaria uma ruidosa gargalhada, pedindo ao seu interlocutor para não brincar com coisas sérias. No fim, quando descobrisse que era efectivamente a Companhia de Teatro de Almada que estava no Teatro Lethes com o texto de Feydeau A Purga do Bebé, perguntaria com perplexidade o porquê de tal escolha, de tal encenação, de tal horror. Será que os grandes grupos convencionados com subsídios, cujo principal objectivo é dar ao público a tal cultura que serve para comer, julgará que fora dos grandes centros o público gosta de tudo e tudo degluta sem questionar? Quando o nosso espectador que inadvertidamente foi ao Teatro Lethes disse ao amigo para não brincar com coisas sérias, eram efectivamente de coisas sérias que ele estava a falar. Porque se trata de uma responsabilidade ao nível de uma direcção artística que as companhias têm de ter. E de dar contas. A nós, o público que financia os espectáculos com os seus impostos. Podemos começar por perguntar qual o sentido da escolha de um autor como Feydeau, que pouco ou nada tem a ver com a nossa realidade e não escreveu textos suficientemente marcantes para atravessarem a história de uma forma transversal, pela intemporalidade dos seus temas. Podemos questionar-nos sobre o tema propriamente dito. Que terão os vasos de noite, os penicos, as purgas, os clisteres de tão original, inovador ou importante a dizer à humanidade? São temas transversais no que diz respeito à existência humana. Mas terão aquela função de nos alimentar o espírito, divertindo-nos ao mesmo tempo? Ou serão apenas temas cuja única função é animar os salões com anedotas para entreter? O absurdo do texto? Que tem o texto de absurdo para além de mostrar de forma deselegante o quotidiano de uma classe média decadente? Onde está a Companhia de Teatro de Almada que nos trouxe O Carteiro de Pablo Neruda, Os Directores ou a magnífica interpretação de Teresa Gafeira nesse texto, esse sim, absurdo, de Beckett, Os Dias Felizes? Que mal tem um Almeida Garrett, um Gervásio Lobato, ou mesmo uma adaptação de Eça de Queiroz se quisermos falar em autores do século XIX cujo tema passa pela comédia de costumes mas que a sabem também ultrapassar de forma admirável? E estes autores estão bem dentro da nossa realidade, criticando os seus vícios, infelizmente ainda presentes, com uma verve implacável. Talvez, se tivéssemos visto um texto como Lisboa em Camisa todos déssemos razão a Batista Bastos quando afirma, numa das suas crónicas “Vivemos todos numa farsa de Gervásio Lobato”. Não vivemos numa farsa de Feydeau. A encenação de Vítor Gonçalves, apostando nos clichés mais básicos quase que estragava o único trabalho digno de nota: a interpretação de Teresa Gafeira. E não se dá o caso de considerar que não se deve falar de tudo. Pode falar-se de tudo, mas nem todos o podem fazer. É por isso que há uma diferença entre autores como Feydeau e autores como Tchecov cuja escrita encerra em si a metáfora das três caixas chinesas: não deixando de escrever comédias, faz-nos reflectir sobre o quotidiano, o sentido do humano e o sentido da humanidade em geral. Isto não é o que o público merece de uma companhia como a CTA. Isto não é o que o Algarve merece dos espectáculos de itinerância das companhias com subsídios e meios para formar públicos E nem sei se teria sido do cenário de um mau gosto ostensivo e propositado, se do rolos na cabeça e das meias a cair de Teresa Gafeira, se do texto vulgar, ordinário e deselegante ou da criança malcriada interpretada por um marmanjão de 20 e tal anos, o que eu sei é que tudo estava pleno de um tal horror que mal saí do teatro tive vontade de me pôr à estrada e ver teatro a sério. Como aquele que se faz no Algarve por grupos como os Sin-Cera, o TAL, o APARTE, as Ideias do Levante, o Grupo 4 Ventos ou o recente Al-Masrah. Nesses grupos encontra-se o ser genuíno de quem tem alguma coisa de importante a dizer, e o faz com uma entrega total. E se há pormenores em que se insiste em chamar a atenção é porque é saudável e legítimo exigir que o teatro no Algarve se bata à excelência e não se fique pela mediocridade. Porque nós, os do Algarve, também somos exigentes. E apesar de periféricos também sabemos distinguir o trigo do joio. O trigo, guardamos com carinho, sorvendo os deliciosos odores e sabores. Ao joio deitamos fora. Como qualquer pessoa exigente que ame cultura. Mas talvez o que nos tenha chocado mais foi o facto de sabermos que a Companhia de Teatro de Almada é uma companhia de referência que tem dado inúmeras provas do seu valor. É por isso que, quando vamos ver a Companhia de Teatro de Almada temos uma convicção profunda de que iremos ver bom teatro. E ficamos desiludidos quando o que nos dão não corresponde às nossas expectativas. Porque sabemos que são capazes de muito melhor. Mas uma companhia com a responsabilidade que lhe advém dos seus 34 anos de existência com trabalhos dignos de registo não se pode dar ao luxo de pôr estas lamentáveis nódoas no seu currículo. Ou de considerar que já não há mais nada a dizer para além das tricas de trazer por casa. E principalmente, os que vivem na periferia são capazes de conseguir apreciar de uma forma mais abrangente tudo aquilo que em teatro se vai fazendo, uma vez que como há muito pouco, todos vamos ver tudo. E já vimos coisas muito boas neste Algarve. Este espectáculo ficou no rol dos maus. E foi pena.
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