Thursday, August 16, 2007

Um Bando em revolução


Ir para uma aldeia, privar com os seus habitantes, sentir as portas de suas casas a abrirem-se, comer à sua mesa, pode ser o difícil anseio de qualquer forasteiro que queira fazer um trabalho de investigação. Mas contar com os habitantes de uma aldeia para entrarem num espectáculo que se oferece à aldeia e aos seus visitantes pode ser uma missão impossível. A companhia de Teatro O Bando pegou no repto lançado por Faro Capital da Cultura e o resultado foi a todos os níveis surpreendente.
Quem tivesse chegado desprevenido no último Domingo à aldeia de Querença teria certamente pensado que por ali havia um qualquer culto muito particular à personalidade. Todas as casas da aldeia tinham nas janelas as fotografias a preto e branco dos rostos dos seus habitantes. A casa do padre, a escola, a Casa do Povo olhavam os transeuntes através dos olhos de quem lhes dava vida. Eram as “Memórias à janela”, exposição que evidencia todos os habitantes da aldeia, dando rosto às suas casas. Depois, quem seguisse para a capela da aldeia veria um espectáculo singular: uma senhora idosa, com uns trajes um pouco andrajosos ostentava um véu de noiva e um bouquet feito de um ramo de oliveira. A senhora estava eufórica e vinha em cima de um tractor com uma banda de música atrás. Era a noiva, que convidava toda a gente para o seu casamento, ao mesmo tempo que ia pedindo oferendas aos seus amigos e vizinhos. O percurso fazia-se através de uma ladeira um pouco íngreme, com as caras dos habitantes das aldeias e sorrirem-nos através das suas fotos à janela. Às vezes as caras estavam sujas e as raparigas iam limpar o retrato para ver quem lá morava. E o retrato desaparecia quando ao abrir da porta o verdadeiro dono aparecia a sorrir e a contar uma história de vida. Houve quem contasse a história do milho rei, ou quem revelasse que tinha ido para ali morar há 22 anos. Histórias de vida que fazem parte da memória colectiva, acabando por fazer parte do espectáculo que vai buscar a sua história à vida. A noiva continuou o seu percurso até ao adro da igreja, onde já tudo estava preparado para a bênção da união pelo cura da aldeia. Perto havia uma mesa com jarros contendo água perfumada de ervas aromáticas (bela-Luísa, hortelã, rodelas de laranja e de limão), oferecendo um aprazível refresco aos convidados cansados da subida. Passados alguns momentos de compreensível nervosismo para a noiva, onde os comentários acerca do atraso do seu prometido já não se faziam esperar, eis que chega o noivo no seu tractor: um elegante e vistoso rapaz de cerca de 20 anos. Ele confessa que se conheceram num anúncio de jornal e que realmente ela é a mulher com que sempre sonhou. O padre abençoa a união e as crianças da aldeia surgem lançando bagos de arroz e pétalas de flores. Para celebrar a boda, cada convidado pega num estandarte onde está colocada a sua foto em grande plano e segue numa estranha procissão para o terreiro onde irão decorrer as festividades. Pelo caminho estranhos arautos param junto a determinadas casas, onde lêem uma pouco da história da pessoa, homenageando-a. Por fim chega-se ao terreiro onde se irá comemorar o casamento. Espalhados um pouco por toda a parte, dependurados nas árvores, estão alguns dos mais significativos figurinos utilizados nos espectáculos do grupo O Bando. Aqui dá-se a verdadeira cisão entre a aldeia e o espectáculo, uma vez que O Bando fez uma evocação de cenas de alguns dos seus trabalhos, junto dos figurinos suspensos nas árvores, com uma voz off anunciando os nomes dos actores, das personagens e do espectáculo de onde pertencem. Um momento bonito, qual galeria de memórias animada pelas suas antigas almas. Outro momento singular, como as gentes desta terra, no dizer de Teixeira Gomes, foi o momento musical, em que a partir dos cantos populares, interpretados por senhoras da terra, foi construída uma orquestração complexa com instrumentos de sopro, cordas, uma cantora lírica e a voz singular de Ana Brandão, capaz de mudar de registo a cada respiração. Talvez um pouco exagerados os finais cómicos de Ana Brandão, um pouco contrastantes com a grandiosidade da música. O final foi a partilha da refeição composta por bolinhos caseiros, vinhos generosos e a água de ervas, ao som do acordeão, impondo aos convidados uma imensa vontade de dançar.
Tudo aquilo que se viveu naquele Domingo só foi possível devido a um esforço e a uma entrega, bem ao estilo de Coupeau, dos actores e técnicos d’O Bando, que têm vindo a tomar contacto com a população de Querença desde há uns meses atrás, firmando o projecto de residência durante três semanas. A actriz Paula Só esteve perfeita na personagem da velha noiva, convivendo com as pessoas de Querença como se de uma delas se tratasse. Toda a sua expressão facial e corporal apresentava uma senhora com cerca de 80 anos, feliz por finalmente ter conseguido um noivo para casar.
Este foi até ao momento o projecto de Faro Capital da Cultura mais maduro e conseguido. Talvez porque tenha sido concebido de acordo com os seus objectivos mais essenciais: trabalhar com as populações locais, dar formação e contribuir para a formação de públicos. Pode ser até que de Querença não saia nenhum actor. Mas pelo menos fica na memória colectiva um acontecimento que se impôs de forma única e perene. O teatro, a arte do efémero precisa destas âncoras para se alicerçar nas gentes e nas regiões.
O Bando irá continuar em Querença até dia 8 de Outubro, dia em que se apresentará a “Festa de Despedida”. Até lá, e para se ir matando antecipadamente as saudades, ocorrerão vários espectáculos dias 30 de Setembro, 1, 2, 7 e 8 de Outubro em vários locais como o salão de festas da casa do Povo ou o Adro da Igreja. Mas o melhor mesmo é chegar a Querença e perguntar. Para além dos habitantes saberem exactamente o que está a acontecer e onde, recebem-nos com simpatia.

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