Thursday, August 16, 2007

O Desencantamento das Mouras


Mafalda Deville e Nuno Silva estrearam dia 1 de Setembro no Teatro Municipal de Faro o espectáculo M’Agua que, para além de procurar desencantar as mouras algarvias, contou com a presença em palco de pessoas da região que frequentaram uma formação de dança.
O público entra no pequeno espaço construído para 200 lugares do Teatro Municipal de Faro e, à medida que se vai sentando, pode ir observando e ouvindo um grupo de percussionistas, tocando em instrumentos aproveitados de objectos do dia-a-dia, como vasos, batedeiras de claras um recipientes para os chapéus de chuva. Para o espectáculo começar os percussionistas foram abandonando o palco um a um, ficando no final um batuque solitário que deu o mote à entrada dos dois bailarinos. Nuno Silva e Mafalda Deville dançaram uma história de dois viajantes que se deparam com o realismo fantástico dos mitos arquetípicos do Algarve. Dois jovens que se apaixonam por uma terra de encantos e sabores exóticos. Há um confronto entre os dois jovens, que trajam os figurinos, com a assinatura de Patrícia Raposo, que misturam o folclore minhoto com a gestualidade dos Pauliteiros de Miranda, evocando nos gestos os movimentos das artes marciais. Os bailarinos vão-se despojando das suas roupas e dão início a uma dança belíssima de enamoramento, ao som da música de Abel Arez. Esta dança de enamoramento despoleta a visão da moura, deitada no fundo do teatro. Uma visão a que se retira parte do mistério, sobretudo quando a desditosa Cassima se levanta e desaparece. Pois não foi Cassima que ficou sem uma perna devido à curiosa mulher do carpinteiro? A visão onírica desmorona-se completamente quando a figurante desfaz a personagem antes do telão cair.
Em vídeo começamos a ver o rosto da desditosa Cassima que permanece século após século debaixo encarcerada no fundo do poço. Daí a mágoa gerada pela água, elemento habitualmente libertador. Daí o contraste com a dança libertadora que o bailarino executa, em que se funde com a água, provocando o desejo libertador da moura. Esta fusão com o elemento água provoca o desencantamento da moura desvendado através de uma coreografia forte e violenta, executada por Mafalda Deville. A moura desencanta-se devido à tensão erótica desse casal inglês.
Uma visão bonita, porque verdadeira, foi o aparecimento de uma senhora idosa, arrumando as vestes da moura, ao mesmo tempo que se ouvia fragmentos da história do desaparecimento de um homem junto à fonte em que a moura habitava.
Esse facto origina o desejo de celebrarem a sua união segundo os ritos dos povos mediterrânicos. De vestido branco, ao som de música proveniente da bacia do mediterrâneo o jovem casal celebra votos perante a percussões e os sorrisos quentes das gentes do Sul. O buquêt é lançado, a alegria é contagiante e o espectáculo acaba em apoteose, com os convidados a partilharem da certeza de felicidade dos noivos. O espectáculo acabou com pessoas normais, que gostam de dançar, sem serem bailarinos, como encontramos em qualquer casamento. O público também foi convidado a participar, partilhando da alegria do jovem casal.
Um único reparo a uma ou outra veste dos figurantes, que não se coadunavam com o traje com que habitualmente as pessoas se apresentam para um casamento. Um só figurino pode destruir a harmonia de todo um conjunto e há que ter cuidado com a estética que se pretende num determinado quadro do espectáculo.
M’água é um espectáculo que revela o olhar deslumbrado dos forasteiros que se detêm no Algarve em busca de emoções fortes. Nuno Silva e Mafalda Deville conseguiram construir uma série de quadros baseados no imaginário colectivo dos algarvios, a que se assistiu com agrado. O seu desempenho como bailarinos superou completamente algumas fragilidades da história. Os figurantes deram uma dimensão carnal ao mundo etéreo das mouras, reconduzindo o sentido do espectáculo para uma dimensão próxima do espectador.
A moura Cassima, uma das mouras mais trabalhadas na literatura oral algarvia, viu mais uma maneira de se desencantar. Se é que ainda não aproveitou a sugestão dada no texto Memorial do Moleiro ou a Evocação das Mouras no Sítio das Fontes, apresentado há cerca de dez anos pelo grupo Ideias do Levante, e não terá fugido com o moleiro na tal noite de todas as mouras: a noite de S. João.

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