Thursday, August 16, 2007

Como um quadro de Chagall


Onírico, simbólico, poético e cru podem ser alguns dos adjectivos encontrados para qualificar o trabalho que O Bando apresentou dias 9 e 10 no Convento do Carmo, em Tavira, integrado na iniciativa de Faro Capital da Cultura Cenas na Rua. Um trabalho intenso e profundo sobre um dos mais perturbantes contos de Miguel Torga . O Alma Grande.
Às vezes a rudeza das gentes das montanhas consegue abrir caminhos mais piedosos que discussões vazias de sentido que alguns académicos se dão ao luxo de ter. De facto, chamar “Alma Grande” a alguém que piedosamente provoca a morte a quem está em sofrimento pode ser tão irónico como merecido. O último trabalho que o grupo O Bando apresentou no Algarve, neste caso em Tavira, trabalha de forma original o perturbador conto de Miguel Torga “O Alam Grande”, integrado nos Novos Contos da Montanha. Interpretado ao vivo por três músicos, Inês Vieira no violino, António Laertes no órgão e João Quítalo no clarinete baixo, João Brites transforma o inquietante conto de Torga, através da música de Jorge Salgueiro, numa partitura cénica. O cenário, depurado, contém os elementos necessários para dar conta ao espectador do universo simbólico e denso do tema tratado por Torga – a eutanásia. O conto fala-nos do destino trágico de um homem cujo trabalho era aliviar o sofrimento dos que não tinham salvação, abreviando-lhes um pouco a morte, sob a cumplicidade de toda a aldeia. Socialmente temido, vivendo num desterro, Ti Alma Grande, acompanhado pela dureza do seu rosto, nunca se negava ao golpe de misericórdia, alívio do sofrimento humano. Socialmente temido e aguardado, o Abafador era uma espécie de anjo da morte inevitável, actuando num microcosmos que construiu as suas próprias regras. Como uma confraria secreta que se serve da misericórdia para ultrapassar a passiva e dolorosa espera, alimentada pela crença na providência divina.
A maneira de apresentar este conto, através de dois arquétipos universais personificados por duas actrizes que cantam toda a história, imprime a densidade dramática exigida ao tema. Sara de Castro e Sara Belo, Lia e Raquel, mostram-nos os opostos ancestrais de forma exemplar. As oposições arquetípicas dia/noite, luz/sombra, vida/morte acompanham todo o desenrolar da acção, desde a oposição inicial em que as actrizes se encontram costas com costas até ao abraço final, constitutivo de uma realidade que uma não pode existir sem os seus opostos. O jogo de luz é marcante para a apropriação simbólica das emoções, sobretudo nos momentos em que o apelidado Abafador desfere o golpe de misericórdia ajudado pelas suas mãos e pelo joelho cravado nas costas do paciente. O círculo de luz marcando a viagem do Alma Grande marca também a fronteira da sua ligação com os outros seres humanos, evidenciando com a fugacidade da luz a distância ténue entre a vida e a morte.
A cenografia parecia retirada de um quadro de Chagall. Começando pelos figurinos das actrizes que sugeriam a imagem de Bella, a mulher do pintor, sempre vestida de branco ou de preto, com um cabeção de folhos como é habitualmente retratada nos seus quadros, até ao violino, sempre presente na sua obra. Por vezes, parece mesmo estarmos a admirar telas como “o aniversário”, pela disposição dos corpos que contraria a gravidade, equilibrando-se quase miraculosamente nas costas de uma cadeira. E são muitas as relações com o pintor que se podem verificar ao longo do espectáculo. Começando pela religião, comum ao pintor e à aldeia na qual se passa a história, o judaísmo, até aos traços marcantes e duros de uma ruralidade que sempre sobressaiu nos quadros de um pintor que nunca negou as suas origens.
Os movimentos dos actores preparados por Olga Roriz dão bem conta da poética do pintor em articulação permanente com o frágil equilíbrio da história. Uma história com um desfecho trágico, procurando encontrar o sentido para a sempre difícil e complexa palavra liberdade.
Ao nível do trabalho de actor, há uma referência marcante para Horácio Manuel, que interpreta o Alma Grande. A dureza do seu rosto, a sua fala áspera, a movimentação que antecede a hora da morte vão ao encontro da personagem de forma congruente. Quanto a Nicolas Brites, o actor que faz de criança, vemo-lo a utilizar propositadamente uma máscara patética, discutível ao nível da dramaturgia, uma vez que suja o decurso trágico da acção. Apesar da criança agir levada por um ímpeto intuitivo de quem ainda não entende todos os factos da vida, o facto de parecer um menino tolinho retira-lhe aquela grandiosidade que só as crianças, na sua imensa inocência sábia, conseguem ter. Essa opção estética contrasta com o depuramento e bom gosto que acompanha todo o espectáculo, assente não só na música, como na figura das duas actrizes. Sara Belo está especialmente portentosa nesta sua estreia, interpretando Raquel, o arquétipo das trevas piedosas que conduzem à morte mas que amparam o viajante com um maternal abraço.
No trabalho nota-se uma coerência entre os actores, a intensidade da história, a música, a interpretação e o jogo coreográfico. O facto das actrizes interpretarem continuadamente o texto através de uma partitura musical convida o espectador a experimentar uma sensação de grandiosidade quanto ao tema, lembrando as grandes óperas épicas. E de facto, que tema pode superar em grandiosidade a discussão sobre a frágil fronteira entre a vida e a morte? Continuando a linha a que O Bando nos habituou, em que alia o texto um desempenho quase acrobático dos actores, tentando penetrar nas instâncias mais profundas da nossa personalidade, este é um espectáculo denso, enigmático, que contribui para a reflexão sobre um dos temas mais inquietantes das modernas sociedades ocidentais: a morte assistida.

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