Thursday, August 16, 2007

Mário Spencer mergulhou em Othello


Mário Spencer, cara que nos habituámos a ver em alguns programas de humor da televisão, está no teatro há sete anos. Fez o curso de formação de actores, técnicos e animadores sócio-culturais promovido pela ACTA, A Companhia de Teatro do Algarve. Desde então tem vestido a camisola deste grupo de teatro profissional. Músico, cantor, homem da noite, pôs tudo em suspenso para se dedicar inteiramente áquele que diz ser o papel da sua vida: Othello. Encenado por Joaquim Benite estreará Sábado, 26de Novembro, no Teatro Lethes.
AO – Como tem sido esta experiência de trabalhar um texto tão intenso com uma equipa nova, com colegas que mal se conhecem, com um novo encenador?
MS – Tem sido muito bom. Os colegas da Companhia de Teatro de Almada são pessoas com mais experiência, com os quais se aprende muito. Mas pelo facto de terem muito mais experiência não deixam de ser companheiros e de ter um espírito de camaradagem e entreajuda notável. Eu só tenho sete anos de teatro e estou contente por ter esta oportunidade de aprender muito com todos eles. Com o encenador então, tem sido fantástico, porque o método do Joaquim Benite baseia-se na interiorização profunda da personagem. Ele está a ajudar-me a ir sempre mais fundo na procura das emoções e dos registos adequados para a minha personagem e isso tem feito de mim um actor melhor.
AO – Em que sentido esta produção marca a tua carreira de actor?
MS – Em mim haverá sempre uma antes de Joaquim Benite e um depois de Joaquim Benite. Já não sou a mesma pessoa e, naturalmente, não serei o mesmo actor. Esta experiência está a ser um autêntico curso de teatro, o que é bom, porque o actor nunca pode parar, tem sempre de evoluir.
AO – E como é esse “ir mais fundo” na procura da emoção certa?
MS – Há acontecimentos que eu pensava já estarem bem enterrados no fundo de mim próprio que estão agora a surgir na descoberta da personagem. A mim parecem-me emoções novas, mas no fundo são um reviver de experiências que me aconteceram. Posso dizer que nunca pensei conseguir ir tão longe no meu trabalho. É como que uma exorcização de fantasmas que precisavam de ser libertados para que a personagem funcionasse. E para mim enquanto pessoa também é positivo porque é libertador. Funciona um pouco como psicodrama.
AO – Quanto à personagem que interpretas, Othello, achas que o consegues trazer à actualidade?
MS – Acho que Othello é e será o papel da minha vida. Othello é um texto actual porque aquilo que Shakespeare escreveu é intemporal. Atravessa todas as épocas porque tem a ver com a raiz mais profunda do humano. Penso que não há ninguém que consiga descrever tão profundamente a alma humana como Shakespeare o fez. Na personagem que interpreto eu tenho que dar tudo porque a essência do texto o exige. Em Shakespeare não há personagens fáceis porque todas elas descrevem a multiplicidade de emoções por que todos passamos. Othello é uma personagem complexa mas a complexidade de Shakespeare vê-se até nas personagens mais simples. Há cinco anos interpretei uma outra personagem shakespeareana, o Leonino, um gladiador, numa co-produção entre o grupo Seiva Trupe e o Teatro Nacional de S. João, no Porto. Era uma personagem secundária, mas para a interpretar adequadamente tive de me preparar, ao nível da investigação, noutros textos de Shakespeare, como a Tempestade, e relacioná-lo com outras personagens de outros textos, como o Caliban.
AO – Então será que podes descrever um pouco mais como é trabalhar Shakespeare?
MS – Há toda uma fisicalidade e uma psicologia da personagem que têm de ser trabalhadas até ao mais ínfimo pedaço do nosso ser. Porque em Shakespeare não há nada supérfluo, tudo é essencial. Não pode haver clichés: é a alma humana a ser descrita. Por isso eu tenho de mergulhar dentro de mim e reviver em palco a minha vida. E só dando à personagem tudo o que encontrar de mim, a posso dignificar no palco. Nos ensaios, o Joaquim Benite tem-me feito descobrir coisas que eu nem sequer sabia que existiam em mim.
AO – Onde te inspiraste para construir este Othello?
MS – Eu vi as versões clássicas, com o Sir Lawrence Olivier, o Kenett Branagh, o Orson Wells e fiquei assustado. Mas depois descobri que para este desafio só posso contar comigo. Este há-de ser o meu Othello e há-de ser diferente de qualquer outro. Claro que, sendo eu africano, farei um Othello diferente porque estou a sentir as minhas memórias, estou a ver as minhas imagens de criança.
AO – Como actor que também entra em séries de humor televisivas, consideras que a televisão desvia o trabalho do actor daquilo que é importante?
MS – O grande problema da televisão é o tempo. E o dinheiro. Havia um actor brasileiro que dizia com alguma graça que o teatro é a arte do actor, a televisão a arte do produtor e o cinema a arte do realizador. O que se passa na televisão é que não é dado ao actor o tempo necessário para interiorizar seja o que for, porque cada minuto gravado tem um custo muito elevado. Então tem de se fazer o máximo no mínimo tempo possível. E isso, para além de ser desgastante, desvirtua o trabalho do actor. Na televisão não é preciso chegar ao público, é o público que vem até nós. Não precisamos de colocar a voz para sermos ouvidos, não precisamos de ter presença em cena. Geralmente está tudo rodeado de adereços. O palco é muito mais violento mas é aí que o actor se revela.
AO – Aprecias mais uma cena depurada que o recurso aos adereços?
MS – É preciso percebermos que no tempo de Shakespeare os actores contavam sobretudo com eles próprios e com o texto. Não havia grandes concepções cenográficas. Os actores davam de si e faziam o público criar o seu imaginário, que é também uma coisa que a televisão não deixa. Num espaço vazio nós imaginamos aquilo que queremos. É como um livro com gravuras. Se lermos a história sem termos a ilustração a nossa imaginação vai muito mais longe. O teatro tem essa capacidade de nos fazer acreditar naquilo que não está lá, mas efectivamente está, porque criamos essa imagem no nosso imaginário.
AO – Qual foi a tua grande lição de vida, dentre todas as que retiraste deste encontro com o Joaquim Benite?
MS – O Joaquim Benite fez-me acreditar que as coisas que nós menos percebemos são as mais importantes. E isto porque, quer queiramos, quer não, passamos a pensar nelas. Depois, quando menos esperamos, pode ser até quando estamos absortos a ver um bando de pássaros, a solução vem como que de repente, e tudo passa a fazer sentido. Penso que isto é uma grande lição de vida.
AO – Relativamente à temática de Othello, achas que ainda faz sentido falar-se de racismo?
MS – Othello não é uma peça que fala só de racismo. Aliás, todas as peças de Shakespeare abordam várias temáticas. Aqui, e pode ver-se o quão avançado Shakespeare estava para a época, trata-se do problema do racismo, mas também da relação entre duas pessoas de idades muito diferentes. E também da luta de classes, e também da ambição. Desdémona é uma mulher forte que se apaixona pelo discurso de Othello porque é diferente. Apaixona-se pela diferença e aí Shakespeare desafiou as convenções.
AO – Como se tem revelado a escola da ACTA neste desafio de integração com outra companhia.
MS – Tem-se revelado de uma importância extrema. O cuidado que a companhia tem na articulação das palavras permite agora que nos libertemos mais desse aspecto técnico e vamos ao encontro das emoções. Eu sigo o Luís Vicente há sete anos porque acredito na sua linha, no seu empreendedorismo, na sua relação com o teatro, na sua esética. E o trabalho da ACTA tem-se revelado uma lição de vida a todos os níveis.
AO – E depois de Othello?
MS – Este texto é uma dádiva para mim. Tenho pelo Luís Vicente uma gratidão imensa por ter acreditado que eu seria capaz de vencer este desafio. Depois de Othello não sei o que se seguirá. Se que neste momento vou dar tudo o que tenho ao Othello.

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