Thursday, August 16, 2007

Ricardo III e o dever de vigiar o poder


O que leva uma companhia de teatro nossa contemporânea a levar à cena um espectáculo baseado numa tragédia vivida no séc. XV? Luis Vicente responde a esta questão dizendo que: “Acima de tudo, o que nos interessa do texto de Shakespeare são os aspectos de contemporaneidade que encontramos no proceder e na governação desse monarca que reinou na Inglaterra do século XV, mais precisamente a sua relação com o Poder. É nisto que reside a actualidade do tema e, consequentemente, a leitura que dele fazemos. Ricardo III será, portanto, um espectáculo iniludível e incontornavelmente político e com uma marca ideológica. Mas não será por isso que iremos impedir as personagens de afirmarem a sua vitalidade. São dois planos distintos: um, o olhar contemporâneo comprometido com um sentido de cidadania, que é o nosso; outro, a natureza activa e excitante da personalidade humana consubstanciada numa estética a que os estudiosos chamaram “teatro do indivíduo”.
Depois dos acontecimentos vividos no dia 11 de Setembro de 2001 o olhar com que se relê qualquer obra maior da dramaturgia universal surge-nos eivado de uma outra significação, de um trágico esclarecimento: a essência da maldade tem vindo a sobreviver ao longo dos séculos. Lembramo-nos de Hannah Arendt, que na sua profunda análise sobre a complexidade da natureza humana, apontaria para uma certa banalidade do mal. Este surge, segundo a filósofa alemã, quando se condescende com o sofrimento, a tortura e a própria prática do mal. Daí esta filósofa concluir que é fundamental guardar uma permanente vigilância para garantir a defesa e preservação da liberdade. É essa vigilância que a ACTA se propõe fazer ao apresentar espectáculos como Ricardo III de Shakespeare. A propósito da sede de poder e das doenças sociais de que padecemos, refere José Renato Silveira no seu ensaio A Sede de Poder " Vivemos uma época em que as práticas e o discurso político são associados à mentira, à farsa, ao engodo de maneira descarada. A ética do indivíduo concebida e desenvolvida no Renascimento hipertrofiou-se na contemporaneidade como se fosse algo fundamental na essência humana. Notam-se as consequências desse ultra-individualismo nas inúmeras doenças culturais que se manifestam na sociedade: cultura da esperteza, da transferência de responsabilidade, do imediatismo e do superficialismo, do negativismo e da baixa auto-estima, da vergonha da cidadania e patriotismo, do piadismo ou do rir da própria desgraça, do emocionalismo exacerbado e da ciclotimia, do desperdício, do consumismo, do tecnicismo, do corporativismo, da politicagem, do fisiologismo e do nepotismo e, por último, a cultura do conformismo. Tais comportamentos viciosos proliferam-se na esfera dos três poderes do Estado – Executivo, Legislativo e Judiciário” E acrescenta, a propósito do maquiavelismo de Ricardo III: “A tragédia do rei Ricardo III trata da permanente disputa do poder a qualquer preço e a falta de escrúpulos para a conquista e manutenção dele. Nela, o protagonista é um sujeito manco e corcunda, cuja aparência disforme, segundo o próprio, o impede de usufruir dos prazeres da conquista amorosa, mas não alçar voos mais altos. No solilóquio inicial ele planeia como chegar ao poder mesmo sendo o sétimo na linha sucessória. Para alcançar o seu objectivo, utiliza expedientes vis: conspira, manipula, explora, agrega apoios, promove alianças por conveniências momentâneas, articula adesões e coalizões, persegue e condena à morte os opositores. Movido pela sede de poder Ricardo III articula-se nas sombras, ao longo dos actos e cenas, até alcançar o triunfo almejado: o trono inglês. Para se livrar de quaisquer suspeitas do seu envolvimento nas tramas e urdiduras palacianas ele faz uso de subterfúgios conhecidíssimos: esconde-se sob o manto da religiosidade, sobriedade, humildade e outros artifícios de valores éticos e morais.” É por isso que mais uma vez Shakespeare, na sua acutilância, nos convida a sermos, não só vigilantes, mas sobretudo actores no teatro político. E porque, como nos lembra Hannah Arendt, “as mentiras sempre foram consideradas instrumentos necessários e legítimos, não somente do ofício do político ou do demagogo, mas também do estadista”, temos o dever, como esta filósofa nos lembra, de intervir, porque “é na esfera política e pública que realizamos a nossa condição humana.”

No comments: