Estreou, na passada sexta-feira (14 de Novembro de 2003), no auditório da Universidade do Algarve, pólo de Portimão, a mais recente produção da ACTA, A solidão da casa do Regalo, inserida nos «Outonos do Teatro» - evento cultural que, anualmente, regressa a esta cidade.
Habilmente encenada por Paulo Moreira, a partir do texto do açoreano Álamo de Oliveira, a peça não nos fala só do exílio de Afonso VI na ilha de Angra do Heroísmo. Fala-nos da loucura de um rei devasso, perverso e impotente, despojado do seu trono, da sua mulher, da sua cidade – da sua liberdade –, e fala-nos também da resignação corajosa de uma criança que vê o seu destino colar-se ao destino do seu rei.
O espectáculo conta com as excelentes interpretações de Luis Vicente (como Afonso VI) e João Rocha (como Pagem). O primeiro, sobejamente conhecido pelo público, apresentou-nos um excelente trabalho de actor, onde revela toda a força da experiência madura, ao interpretar uma personagem rica em contrastes físicos e psicológicos. Divertiu, chocou, emocionou, sem nunca cansar, tendo em conta que a personagem em questão é relativamente constante. Uma grande interpretação!
Por seu lado, o jovem actor João Rocha (que vimos, este Verão, no espectáculo de rua O Nariz, produzido pela ACTA) presenteou-nos com uma magnífica interpretação de um jovem pagem de dezasseis anos, cheio de conflitos provenientes de uma juventude precocemente castrada. É nesta personagem que reside o conflito dramático da peça. É uma personagem muito rica, com profunda densidade psicológica e que ganhou vida através da expressão de João Rocha. Apeteceu subir ao palco e dar colo àquela criança tão desamparada... E tão forte.
O espectáculo começa com dois actores que se preparam para entrar em cena. Um momento bonito, aquele em que ambos se preparam fisicamente: João Rocha numa belíssima sequência de movimentos de aquecimento, Luis Vicente em experiências hemiplégicas. Em off, várias vozes dão o contexto histórico, enquanto que em cena os actores vão gradualmente encarnando as personagens. Houve, talvez, um certo excesso de informação. Isso fez com que esta cena inicial me tivesse parecido quase, quase suja.
No entanto, essa sensação dura muito pouco. A passagem entre esta cena e o texto de A solidão da casa do Regalo, propriamente dito, é feita través de uma inteligente manobra de encenação, de tal forma que, quase sem nos apercebermos, somos transportados para uma outra dimensão, passando de um universo mais real e, por isso, mais caótico, para um outro, quase onírico, todo cheio do silêncio da decadência e do esquecimento. São, precisamente, a decadência e o esquecimento que emolduram o drama destes dois homens: tudo cai, tudo se desfaz, tudo se dilui, excepto o chão, que se ergue num abraço maternal, a ajudar o esquecimento.
Para este espectáculo muito bem conseguido contribuíram, de forma determinante, o cenário, os figurinos e os desenhos de luz. Tó Quintas, Esmeralda Bisnoca e Noé Amorim, respectivamente, mostram um sentido e, acima de tudo, uma unidade estética muito apurados e profícuos.
Aliás, penso que é no conceito de unidade que reside a qualidade deste espectáculo. Nada foi deixado ao acaso. Tudo se interliga num conjunto harmonioso que proporciona ao público um momento teatral preenchido e muito enriquecedor.
Nota menos boa para o atraso inicial, que chegou perto da meia-hora. Num país onde a pontualidade ainda é coisa de inglês, não seria melhor começarmos a optar por recompensar os pontuais e educar, pelo exemplo, os atrasados? Não queiramos voltar aos tempos em que toda a gente chegava tarde aos espectáculos, apenas porque «aquilo nunca começava a horas». Ainda assim, houve quem tivesse conseguido chegar depois do início da peça...
A sala não encheu, e não percebo porquê: sexta-feira, entrada livre, «Outonos do Teatro», uma estreia, ainda por cima da única companhia profissional de teatro do Algarve, uma sala de pequenas dimensões... Talvez o frio que se fazia sentir tivesse funcionado como factor desmotivante, ou talvez o público tivesse, pura e simplesmente, optado pela feira que, do outro lado da rua, prometia diversão...
Enfim, um espectáculo teatral a transpirar profissionalismo, experiência e sensibilidade artística, e que se recomenda vivamente.
Patrícia Amaral
15/11/2003
Habilmente encenada por Paulo Moreira, a partir do texto do açoreano Álamo de Oliveira, a peça não nos fala só do exílio de Afonso VI na ilha de Angra do Heroísmo. Fala-nos da loucura de um rei devasso, perverso e impotente, despojado do seu trono, da sua mulher, da sua cidade – da sua liberdade –, e fala-nos também da resignação corajosa de uma criança que vê o seu destino colar-se ao destino do seu rei.
O espectáculo conta com as excelentes interpretações de Luis Vicente (como Afonso VI) e João Rocha (como Pagem). O primeiro, sobejamente conhecido pelo público, apresentou-nos um excelente trabalho de actor, onde revela toda a força da experiência madura, ao interpretar uma personagem rica em contrastes físicos e psicológicos. Divertiu, chocou, emocionou, sem nunca cansar, tendo em conta que a personagem em questão é relativamente constante. Uma grande interpretação!
Por seu lado, o jovem actor João Rocha (que vimos, este Verão, no espectáculo de rua O Nariz, produzido pela ACTA) presenteou-nos com uma magnífica interpretação de um jovem pagem de dezasseis anos, cheio de conflitos provenientes de uma juventude precocemente castrada. É nesta personagem que reside o conflito dramático da peça. É uma personagem muito rica, com profunda densidade psicológica e que ganhou vida através da expressão de João Rocha. Apeteceu subir ao palco e dar colo àquela criança tão desamparada... E tão forte.
O espectáculo começa com dois actores que se preparam para entrar em cena. Um momento bonito, aquele em que ambos se preparam fisicamente: João Rocha numa belíssima sequência de movimentos de aquecimento, Luis Vicente em experiências hemiplégicas. Em off, várias vozes dão o contexto histórico, enquanto que em cena os actores vão gradualmente encarnando as personagens. Houve, talvez, um certo excesso de informação. Isso fez com que esta cena inicial me tivesse parecido quase, quase suja.
No entanto, essa sensação dura muito pouco. A passagem entre esta cena e o texto de A solidão da casa do Regalo, propriamente dito, é feita través de uma inteligente manobra de encenação, de tal forma que, quase sem nos apercebermos, somos transportados para uma outra dimensão, passando de um universo mais real e, por isso, mais caótico, para um outro, quase onírico, todo cheio do silêncio da decadência e do esquecimento. São, precisamente, a decadência e o esquecimento que emolduram o drama destes dois homens: tudo cai, tudo se desfaz, tudo se dilui, excepto o chão, que se ergue num abraço maternal, a ajudar o esquecimento.
Para este espectáculo muito bem conseguido contribuíram, de forma determinante, o cenário, os figurinos e os desenhos de luz. Tó Quintas, Esmeralda Bisnoca e Noé Amorim, respectivamente, mostram um sentido e, acima de tudo, uma unidade estética muito apurados e profícuos.
Aliás, penso que é no conceito de unidade que reside a qualidade deste espectáculo. Nada foi deixado ao acaso. Tudo se interliga num conjunto harmonioso que proporciona ao público um momento teatral preenchido e muito enriquecedor.
Nota menos boa para o atraso inicial, que chegou perto da meia-hora. Num país onde a pontualidade ainda é coisa de inglês, não seria melhor começarmos a optar por recompensar os pontuais e educar, pelo exemplo, os atrasados? Não queiramos voltar aos tempos em que toda a gente chegava tarde aos espectáculos, apenas porque «aquilo nunca começava a horas». Ainda assim, houve quem tivesse conseguido chegar depois do início da peça...
A sala não encheu, e não percebo porquê: sexta-feira, entrada livre, «Outonos do Teatro», uma estreia, ainda por cima da única companhia profissional de teatro do Algarve, uma sala de pequenas dimensões... Talvez o frio que se fazia sentir tivesse funcionado como factor desmotivante, ou talvez o público tivesse, pura e simplesmente, optado pela feira que, do outro lado da rua, prometia diversão...
Enfim, um espectáculo teatral a transpirar profissionalismo, experiência e sensibilidade artística, e que se recomenda vivamente.
Patrícia Amaral
15/11/2003
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