Olhar a realidade de frente, sem estar determinada por um valor excessivo dos objectos ou dos comportamentos, é o que nos propõe o professor Herrero, cada vez que no calendário o dia 13 calha a uma sexta – feira. A última foi comemorada em Silves, onde a originalidade do evento atraiu os espíritos mais libertos da superstição. É caso para dizer: vai-te embora azar!
Devo confessar que sou uma fã incondicional da iniciativa proposta por Herrero, em tentar libertar as mentes que se auto subjugam ao poder da superstição. Super, prefixo que desde logo indica algo que está acima, que tem um valor acima do que lhe é devido. A superstição é, por assim dizer, o significado excessivo que é atribuído aos objectos, aos comportamentos.
Esse significado, diferente do significado concreto dos objectos, ou dos comportamentos, perde-se no fio dos tempos, nesse lugar antigo em que os cultos pagãos se insinuavam por entre a religião oficial e havia como que um são sincretismo convivencial. Não há religiões em estado puro e é sabido que os cultos se alimentam de arquétipos: o que não se diz, o que se esconde, mas que faz parte do imaginário colectivo. Muitas vezes, a particularidade dos arquétipos estarem no plano do não dito, origina confusões e retiram-se conclusões precipitadas. Sociologicamente não faz sentido a diferença entre o religioso e o pagão. Entre religião e magia. Se uma cruz é olhada como eficácia prática concreta, que protege do mal, e se desvia do plano simbólico, entramos no plano da magia, fugindo à aceitação humilde do penitente religioso. São terrenos demasiado intrincados para se conseguir avaliar, com precisão, onde começa um e acaba outro. Por exemplo, o culto mariano, matriarcal, começou a ser instaurado a partir do arquétipo da água, desde sempre ligada ao nascimento e à renovação, e não através da teologia oficial. Basta ver o que se passa no Rocio, aqui na vizinha Espanha, dia de Pentecostes com a Senhora do Orvalho. É nesse plano de areias movediças, entre a religião oficial e o culto popular (que no fundo é apenas o que as pessoas pensam acerca da religião), que se instala a superstição. Mas é com bastante pesar que por vezes assistimos a uma prepotência da religião oficial, quando proíbe, por exemplo, que os pescadores lancem ao mar flores na sua procissão anual. Dá sorte, dá azar, são expressões que ainda se ouvem frequentemente no séc. XXI. Há mitos que vão caindo no esquecimento, rituais que se praticam sem se saber muito bem qual o sentido que a eles se atribui (quantos são os que baptizam os filhos apenas com o intuito de reunir a família, sem saber que é um ritual que visa purificar os recém membros da Igreja Católica do pecado original?) enquanto se vão criando outros mitos urbanos que mesmo os mais empedernidos ateus não deixam de cumprir. Quem sabe que o ritual do fim de ano é uma actualização dos mitos ancestrais de criação? E se alguém tem a veleidade de não querer comemorar a passagem do ano leva com dezenas de olhares recriminadores, como se estivesse a cometer algum pecado, ou algum crime de lesa-majestade. Mas o que é curioso, é que quando se pergunta “então e sabes por que é que se comemora o Ano Novo?”, todos respondem “é para nos divertirmos”. Aí, talvez por arrogância, sorrimos interiormente. Não temos vontade de sorrir quando uma ingénua vontade de diversão se transforma em medo, muitas vezes um medo patológico e insensato. É contra este tipo de medos que o professor Herrero se insurge e que todos nos devemos insurgir. E procurar as causas, as tais justificações simples no fio dos tempos e perceber que cada um de nós, apesar de ser um animal social, também é capaz de criar o contexto em que se insere. E, sobretudo, que acreditamos naquilo que queremos.
Este foi o primeiro jantar dos 13 a que assisti. Já lá vão 20, mas só agora se proporcionou. O restaurante, decorado a rigor desde a sua entrada, convida a um olhar mais atento aos pequenos símbolos. Uns mais adequados do que outros, diga-se. Entra-se passando por debaixo de um escadote e o ambiente revela-se sobretudo a negro, com muitas velas. À entrada, do lado esquerdo, podia ver-se um caixão com um boneco insuflável no seu interior. Canto gregoriano, que nos leva a perguntar qual a razão dessa escolha. Será que o canto gregoriano dá azar? Talvez se adequasse mais uma música mais demoníaca… Mesas com 13 lugares, talheres cruzados, listas negras em forma de cruz sobre as toalhas, sal derramado, raminhos de alecrim, copos derrubados, e uma ementa em tom de brincadeira foram os símbolos mais evidentes do azar e da sorte com que nos deparámos. O outro símbolo do azar foram os bruxos convidados e que acederam ao convite, distribuindo mesmo pelas mesas, prospectos anunciando resultados e curas milagrosas. De facto, não me parece que num jantar em que as pessoas fazem questão de enfrentar os símbolos da sorte, seja ela má ou boa, esses bruxos venham a ter muita saída. Mas os cartõezinhos de visita lá estavam, anunciando trabalhos de “amarrações, mau olhado, encantamentos, despachos”, e por aí fora, que a lista era bastante exaustiva. Também os bruxos andam nestas andanças a tentar a sua sorte, o que não deixa de parecer paradoxal. Ou vão-me dizer que bruxo que é bruxo vai arriscar enfrentar o azar, jantando numa noite de sexta-feira 13 rodeado de símbolos de mau-olhado? Ah, já me esquecia, bruxo que é bruxo é imune a essas coisas e sabe prevenir-se, ao contrário de nós, comuns mortais que precisamos dos seus serviços.
É pena esta iniciativa não ter ainda uma vertente lúdica que se adeqúe, pois para além da “Liga dos Amigos da Poesia” e de um ou outro cantor com músicas de desenterrados, a animação centra-se no fantástico ilusionista que Herrero sempre demonstrou ser. Uma coreografia de bruxinhas à volta de um caldeirão, ou mesmo uma adaptação do Auto do Curandeiro, de António Aleixo, vinham mesmo a calhar.
Mas o jantar dos 13 está aí para dar e durar. Entretanto, vamos repetindo como Herrero fez questão de nos lembrar: “A bruxaria não existe. Não passa de lixo mental. A mentalidade é que tem de mudar. Para nos libertarmos da superstição temos de nos rir.” Sigamos o conselho do professor que logo descobriremos que rir é o melhor remédio.
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