Friday, August 17, 2007

D. Giovanni em Faro


A personagem de Don Juan, na qual está baseada a ópera Don Giovanni de Mozart, foi apresentada ao mundo em 1630 através da obra El Burlador de Sevilla do monge e dramaturgo espanhol Tirso de Molina. Uma peça bem escrita mas que nunca foi considerada importante durante a vida de Molina. A personagem de Don Juan, contudo, fascinou a Europa por séculos vindouros, aparecendo em milhares de peças, histórias, poemas épicos, óperas, e investigações filosóficas sob diversos nomes — entre eles Soren Kierkegaard. Aspectos muito significativos do universo simbólico de Soren Kierkegaard são analisados em função de determinadas figuras da misoginia romântica: na sua reelaboração kierkgaardiana, os mitos de D. Juan e Abraão aparecem como variantes de um mesmo esquema ideológico, caracterizado por três estádios. O primeiro era o estético e caracterizava-se pela busca da diversidade, cuja personagem arquetípica é o sedutor insaciável Dom Juan. Mas um ponto, diz Kierkegaard, será comum no caráter dos estéticos: “o desejo”. Este desejo poderia passar pela satisfação sentimental, material, entre outros, mas em última instância, o desejo erótico.
Em Itália, a história foi adoptada pela Commedia dell’arte, exibindo máscaras e muitas piadas burlescas, enfatizando as proezas sexuais de Don Juan. O sedutor italiano transformou-se num homem egocêntrico, controlado pelos seus apetites vorazes e implacável na conquista dos seus prazeres sexuais. Preguiçoso, obcecado com a beleza, desvalorizando qualquer coisa que não fosse o seu prazer pessoal, Don Juan é uma personagem da era do vazio. Eliminou a transcendência da sua vida e ridiculariza qualquer sentimento religioso. A sua obsessão pelas mulheres advém da sua permanência no estádio estético kierkegaardeano. Da Ponte, em 1787, apropriou-se de todas as narrações de Don Juan que precederam seu libreto, desde Molina e Molière à commedia dell’arte, acrescentando pormenores da sua lavra, como a ambígua personagem de Donna Anna.
No ensaio geral que a produção destinou aos jornalistas pôde apreciar-se a que encenação da ópera D. Giovanni, assinada por Paulo Matos, teve alguns pormenores interessantes, embora por vezes o arrojo ultrapassasse os limites da compreensão de um público menos atento. O plano inclinado sobre o qual os cantores evoluíam era uma boa solução cénica, pois dava ao espectador a ideia de desequilíbrio, patente na personagem de D. Giovanni, interpretada por Nicola Ebau. Desequilíbrio porque em constante busca, não da beleza ideal, mas da variedade, vangloriando-se do elevado número de conquistas. A cor inicial púrpura também era indiciadora de uma trama que implicaria sofrimento. No entanto, a pantalha, quando não se debatia com problemas técnicos, apresentava imagens dentro do universo kitch, como a sucessão de olhares na descrição das mulheres feita por Leporello, defendido por João Merino a D. Elvira, interpretada magistralmente por Ana Ester Neves, ou as duas luas na romântica cena da varanda, para reforçar o engano a que a sonhadora dama abandonada estava a ser sujeita.
Mas para quê uma pantalha luminosa quando esta não vai para além do clássico telão setecentista?
Da encenação arrojada de Paulo Matos, pelo menos na sessão a que a imprensa teve direito, o que causou mais perturbação foi o jogo de luz entre o plano inclinado e o chão do teatro, cujos focos estavam apontados directamente para o olhar do espectador. Mesmo as alterações de humor apontadas dramaturgicamente não justificam esse incómodo luminoso. Teria sido este, um dos inovadores “elementos de irreverência” a que Paulo Matos se referiu entusiasticamente quando referiu “Um desses elementos [de irreverência] é o jogo de luzes e a sua interacção com o som, quase revolucionário graças a um inovador programa informático?” Pelo menos, a legendagem estava discreta e andava a par das falas dos cantores.
Relativamente ao trabalho das personagens, o jogo entre os cantores estava conseguido na sua generalidade, principalmente na dupla Giovanni/Leporello. De resto, D. Giovanni fazia inteira justiça a qualquer imagem do leviano sedutor. No entanto, o jogo da sensualidade estava muito contido, mostrando um pudor que esta obra não pede e uma encenação contemporânea não justifica. Houve apenas um beijo convincente, ocorrido entre dois figurantes. Mesmo as imagens das mulheres a verde-alface e cor-de-rosa choque no écran luminoso só mostravam olhares e rostos, o que era uma visão muito subtil e romântica daquilo que D. Juan verdadeiramente buscava. No entanto, a alusão à contemporaneidade quando Leporello fala na agenda electrónica, referindo-se ao livro onde anotava os nomes das amantes do seu amo, é inteligente e bem conseguida.
A cenografia concebida por Tó Quintas tinha soluções interessantes, como a varanda basculante que oscilava ao ritmo da emoção de D. Elvira, sobre os dois homens e sob as duas luas. Menos conseguido pareceu o desenrolar de uma tira de pano simbolizando a cortina do quarto da criada, debaixo da varanda de Elvira. O recurso ao puzzle quando o chão se abre e arrasta D. Giovanni para o inferno pelo pecado da sua obstinação está muito bem achado, conseguindo o efeito de um “grand final”.
Os cantores, principalmente os oito solistas, estiveram magníficos na sua interpretação, acompanhando a orquestra num todo harmónico que emocionou. Quando ouvimos a voz do Commendatore, interpretado por David Ruela, percebemos como será a voz da maldição que acaba por arrastar D. Giovanni para o castigo exigido pela sua morte.
Dos figurinos assinados por Esmeralda Bisnoca seria melhor nem falar, pois quando se fala de ousadia não se fala de desleixo, que foi o que aconteceu com o que nos foi dado ver no ensaio de imprensa, destinado a captar imagens na ópera na sua versão final. Um horror a que os cantores não deveriam ser sujeitos. Podemos perguntar-nos porque razão D. Anna, interpretada por Sandra Medeiros, enverga um traje vermelho durante toda a ópera, que a desfavorece, quando está de luto pelo pai. Espera um ano antes de casar com o seu amado, porque está de luto mas entretanto usa vermelho? Podemos perguntar-nos porque razão D. Elvira aparece com uma saia comprida e uma camisa de ganga por cima. O abandono é visível, mas não joga de forma coerente com a dramaturgia cénica dos outros intérpretes. Podemos perguntar-nos também por que razão os fatos das meninas que foram ao casamento de Zerlina / Sara Braga Simões, parecem reciclados de uma arca com vestidos abandonados. E que dizer das cabeleiras das “três graças” convidadas para a orgia de D. Giovanni? Como as raparigas não se sentiam bem com as avantajadas cabeleiras deixaram cair no esquecimento a sensualidade pedida para aquela cena. E poderíamos continuar até à última personagem. A única personagem vestida com um figurino coerente com a encenação era a de D. Giovanni. De resto era uma agressão tão grande à sensibilidade cénica que apetecia fechar os olhos para usufruir em pleno da música de Mozart. Uma encenação arrojada merecia figurinos à altura e pior que aquilo que se viu no Teatro das Figuras é difícil imaginar.
Quanto à música, é interessante notar que, embora advindo de uma história que se tornou muito popular, o tratamento musical que Mozart dá à ópera é extremamente elaborado.Na cena da festa, Mozart concebe uma composição onde, de um lado, os camponeses dançam ao som de um conjunto musical (músicos da orquestra que se deslocam para o palco, vestidos com trajes compatíveis, normalmente ambientada no Século XVIII), enquanto os demais convivas, nobres, dançam um minueto, ao som do restante da orquestra. Duas melodias que se complementam em todos os instantes. A graça e a perfeita sintonia em que ambas as "festas" evoluem e se desenvolvem é um dos muitos toques de genialidade deste compositor brilhante para essa genial ópera. Osvaldo Ferreira recriou de forma igualmente genial essa sintonia de diferentes com a inclusão da bateria que marcava o contratempo na cena do baile.
Mas uma pergunta fica no ar: será que de facto D. Giovanni é mesmo o anti herói? E a essência do humano não se realizará também no estádio estético? Qual o sentido do castigo de D. Giovanni? Teria por ter sido não só um déspota com as mulheres mas também com Leporello, simbolizando a eterna dialéctica do senhor e do escravo? Não será por acaso que Saramago absolve a figura de D. Giovanni. Para este escritor, o mítico sedutor “é o homem que, no final da ópera de Mozart, por uma questão de dignidade, se recusa a aceitar a possibilidade de salvar a alma pela cómoda e tantas vezes hipócrita via de um arrependimento de última hora”.
Ultrapassando a necessária e urgente mudança de figurinos, D. Giovanni é um trabalho que dignifica o Algarve. A ver ou a rever na digressão anunciada pela Região.

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