Wednesday, August 15, 2007

A euforia de um ritual de criação


Depois do escândalo em Paris provocado em 1913 pela dupla Stravinski / Nijinsky, a Sagração da Primavera chega a Faro pela mão de Heddy Maalem e de 14 bailarinos criteriosamente escolhidos dentre vários países africanos. Um som criador, uma coreografia libertadora. Stravinski teria aplaudido de pé esta nova criação.Pode ler-se a propósito da estreia do espectáculo ocorrida em Paris em 1913: “Uma elegante parisiense exclamava indignada: "Há 60 anos que aqui venho e é a primeira vez que troçam assim de mim!'' A geral reagia de forma ainda mais violenta. O auditório ficou em silêncio durante dois minutos, depois, de repente, vaias e assobios desceram das galerias, acompanhadas logo em seguida pelas ordens inferiores. Houve espectadores que começaram a discutir e a atirar-se, uns aos outros, tudo o que tinham à mão. Em breve esta cólera se dirigiu contra os dançarinos e depois, ainda com mais violência, contra a orquestra, que era a verdadeira responsável por esta crise musical. As coisas mais variadas foram-nos arremessadas; apesar de tudo, continuamos a tocar..." Este extracto de Serge Berthoumieux, retirado de umas notas à gravação desta obra, evidencia a dificuldade a ela sentida desde o momento da sua primeira apresentação. Hoje em dia, com o público mais sensibilizado para uma multiplicidade de linguagens estéticas, a Sagração da Primavera continua a ser um suporte artístico que causa algum desconforto no público. O espectáculo trazido ao Teatro Municipal de Faro, coreografado por Heddy Maalem faz uma feliz fusão entre a música vigorosa de Stravinski e as pulsões energéticas evidenciadas em palco pelos catorze bailarinos africanos, oriundos de diferentes países, escolhidos a partir das formações ministradas pelo coreógrafo. Nesta obra, Stravisnki quis expressar a elevação sublime da Natureza renovando‑se a si própria. Apesar de dizer, nas suas crónicas de vida, que a música é, pela sua essência, impotente para exprimir o que quer que seja, nesta obra o compositor quis cantar a força da Terra através de um ritual de renovação e sacrifício. A obra está dividida em duas partes: a Adoração da Terra e o Sacrifício. Nesta coreografia de Heddy Maalem o prelúdio acompanha uma dança de enamoramento de dois jovens. Os ritmos subtis começam a tornar-se rápidos e firmes, evoluindo para sonoridades assustadoras. A mudança de ritmo marca a entrada dos outros bailarinos que dançam de forma vigorosa e contagiante uma dança de acasalamento. O contraste da pele escura dos bailarinos com a caixa branca e insípida da cena permite-nos admirar de forma mais clara a energia depositada na dança. Esta energia, quase primordial, contrastava com as imagens projectadas que sugeriam a desumanização crescente das sociedades contemporâneas. A força bruta da energia emanada dos corpos, como ancestrais rituais de acasalamento faz jus à força da partitura. Os bailarinos formam diversos tipos de padrões, como nas antigas danças tribais, ora marchando em fila num passo miudinho como se fossem para a guerra, quer em círculos que expressam a energia do grupo.
A luz criada por Jérôme Le Lan acompanha de forma sublime todos os matizes e todas as ambiências suscitadas pela coreografia. No final há um ritual sacrificial em que se venera a fecundação da Deusa Terra no corpo de uma mulher. Os corpos caídos em atitude de despojamento erguem-se levando a mulher num andor humano. No fim, a esperança, no corpo de um homem resistente. É através dele que a vida continuará. Intenso, cru e cruel e barbaramente forte. Um espectáculo a que ninguém fica indiferente e que seria certamente aplaudido por Stravinski.

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