Há vidas assim: cruéis, bárbaras, desprovidas de sentido. Vidas de pessoas que foram aliciadas a acreditar num mundo melhor e se depararam com a servidão humana. O abuso de mulheres como escravas sexuais é uma patologia social que se tolera por não haver uma legislação suficientemente forte para dissuadir os agressores. Por não haver suficiente vontade para acabar com esse flagelo.
A companhia de teatro AL-MaSRAH baseou-se num facto verídico para trabalhar a questão dos abusos sexuais. Foi em 1995, no Brasil, que oito mulheres ficaram prisioneiras num navio de carga durante 28 dias, vítimas de maus-tratos, abusos e espancamentos. Rita Alves, licenciada em teatro e dança pela Universidade de S. Paulo e especializada em técnicas corporais para actores assinou a encenação deste espectáculo. Assumiu de forma evidente a dança teatro no processo de criação do espectáculo, fazendo surgir a dramaturgia à medida que a organicidade ia sugerindo a palavra. O espectáculo assenta na fisicalidade dos actores, principalmente das cinco actrizes que representam as prostitutas sequestradas.
O espectáculo começa com a justificação misógina do comandante do navio. Alega, perante o tribunal, que as mulheres foram convidadas para dançar e que, para além de terem comido, bebido, de se terem passeado pelo navio como se de um cruzeiro se tratasse, foram pagas pelos seus serviços. Ele não tinha de ser acusado de coisa alguma. O comandante recolhe-se, presume-se que para prisão preventiva, e surge um imediato puxando um contentor do lixo. O depósito dos detritos é o recipiente de onde surgem as mulheres, consideradas como a imundície da sociedade. Elas estão divertidas, são insinuantes e querem-se divertir. Querem também proporcionar prazer com a sua actuação. Uma após outra vão-se expondo e contando as suas histórias. Prostitutas de estrada, de bordel, empresárias do sexo, dançarinas de bares, uma a uma revela os meandros de uma vida precocemente desviada. As actrizes dançam, mostram uma coreografia ousada e reveladora dos propósitos das prostitutas que embarcaram para o navio cargueiro. Sobem para o navio, simbolizado por uma estrutura de andaime que gira e navega livremente, como se estivesse à deriva. O jogo dos corpos em êxtase sexual está bastante convincente, se bem que poderia ter havido mais interacção em jogos com mais de dois parceiros. A passagem para o lado sombrio acontece impulsionada pela dança contemporânea, que jogando com as energias dos corpos, faz adivinhar os sentimentos de desespero das “raparigas de programa” sequestradas. A violência com que elas são encurraladas no porão do navio, o desespero com que devoram uma couve crua, os gemidos de desalento evidenciam o sofrimento que terão sofrido as oito mulheres que o espectáculo recorda.
Uma imagem cénica fortíssima está patente no enclausuramento e na prisão sufocante levada a cabo pelos dois homens com película aderente. As mulheres ficam enclausuradas no centro de uma teia asfixiante, visualmente perturbadora. Quando se libertam regressam às suas histórias de vida. O medo e a culpa dominam as suas emoções. Medo de viver, de adormecer, de acordar, que leva ao enclausuramento voluntário, à incapacidade de olhar de frente para a realidade, à obsessão de limpeza do mundo exterior. Maleitas que se irão fazer sentir para toda a vida, sequelas de um abuso brutal e socialmente consentido. Culpas que originam violência perante si próprias, escondendo a dor no álcool, escondendo o corpo do seu próprio sentir, gemendo baixinho a mágoa que nem o tempo apazigua.
Este trabalho, mais que um momento de dança-teatro é um documento sentido e profundamente ilustrativo da miséria humana, que impõe uma reflexão urgente sobre o tema dos abusos sexuais infligidos a mulheres. Interpretado por Aline Catarino, Nuno Faísca, Patrícia Vito, Pedro Ramos, Sónia Botelho, Susana Nunes e Verónica Guerreiro, são de destacar as interpretações de Sónia Botelho, pela força, Susana Nunes, pela sensualidade e Pedro Ramos, pela interpretação convincente do misógino comandante do cargueiro. Verónica Guerreiro, Aline Catarino, Nuno Faísca e Patrícia Vito assentaram a sua interpretação na corporalidade, notavelmente dirigida por Rita Alves. A sonoplastia de Susana Nunes assume-se como uma personagem que interage com os actores e reforça a mensagem brutal do espectáculo. O desenho de luz de Noé Amorim, é adequado ao contexto sombrio do tema. As projecções no final, no entanto, para além de estarem a ser recorrentes nas produções mais recentes, converteram-se numa espécie de redundância, pois não acrescentam nada ao horror da vivência daquelas mulheres, provocando um mal-estar gratuito no espectador. Os gemidos, as auto agressões, o rastejar no medo, seriam por si só um final com força suficiente para deixar o espectador num estado de angústia muito peculiar.
Este espectáculo mostra, uma vez mais, como a companhia AL-MaSRAH se impôs no Algarve como um agente cultural capaz de dar aos espectadores algo mais que simples entretenimento. Com este grupo o público sabe que à prestação dos actores se alia um tema de reflexão que urge meditar e até agir para transformar. Porque mostra não só os abstractos dirigentes, mas a gente comum, que se identifica com o público e que provoca a vontade de mudar. Foi o caso deste espectáculo, que não obteve apoio por parte do Instituto das Artes pelo facto daquela instituição considerar que a companhia não tinha condições para a sua exequibilidade. O espectáculo está aí para mostrar como os mais doutos se podem enganar. A injustiça causada pela falta de financiamento ficará na vida desta companhia e no prejuízo do público algarvio.
A companhia de teatro AL-MaSRAH baseou-se num facto verídico para trabalhar a questão dos abusos sexuais. Foi em 1995, no Brasil, que oito mulheres ficaram prisioneiras num navio de carga durante 28 dias, vítimas de maus-tratos, abusos e espancamentos. Rita Alves, licenciada em teatro e dança pela Universidade de S. Paulo e especializada em técnicas corporais para actores assinou a encenação deste espectáculo. Assumiu de forma evidente a dança teatro no processo de criação do espectáculo, fazendo surgir a dramaturgia à medida que a organicidade ia sugerindo a palavra. O espectáculo assenta na fisicalidade dos actores, principalmente das cinco actrizes que representam as prostitutas sequestradas.
O espectáculo começa com a justificação misógina do comandante do navio. Alega, perante o tribunal, que as mulheres foram convidadas para dançar e que, para além de terem comido, bebido, de se terem passeado pelo navio como se de um cruzeiro se tratasse, foram pagas pelos seus serviços. Ele não tinha de ser acusado de coisa alguma. O comandante recolhe-se, presume-se que para prisão preventiva, e surge um imediato puxando um contentor do lixo. O depósito dos detritos é o recipiente de onde surgem as mulheres, consideradas como a imundície da sociedade. Elas estão divertidas, são insinuantes e querem-se divertir. Querem também proporcionar prazer com a sua actuação. Uma após outra vão-se expondo e contando as suas histórias. Prostitutas de estrada, de bordel, empresárias do sexo, dançarinas de bares, uma a uma revela os meandros de uma vida precocemente desviada. As actrizes dançam, mostram uma coreografia ousada e reveladora dos propósitos das prostitutas que embarcaram para o navio cargueiro. Sobem para o navio, simbolizado por uma estrutura de andaime que gira e navega livremente, como se estivesse à deriva. O jogo dos corpos em êxtase sexual está bastante convincente, se bem que poderia ter havido mais interacção em jogos com mais de dois parceiros. A passagem para o lado sombrio acontece impulsionada pela dança contemporânea, que jogando com as energias dos corpos, faz adivinhar os sentimentos de desespero das “raparigas de programa” sequestradas. A violência com que elas são encurraladas no porão do navio, o desespero com que devoram uma couve crua, os gemidos de desalento evidenciam o sofrimento que terão sofrido as oito mulheres que o espectáculo recorda.
Uma imagem cénica fortíssima está patente no enclausuramento e na prisão sufocante levada a cabo pelos dois homens com película aderente. As mulheres ficam enclausuradas no centro de uma teia asfixiante, visualmente perturbadora. Quando se libertam regressam às suas histórias de vida. O medo e a culpa dominam as suas emoções. Medo de viver, de adormecer, de acordar, que leva ao enclausuramento voluntário, à incapacidade de olhar de frente para a realidade, à obsessão de limpeza do mundo exterior. Maleitas que se irão fazer sentir para toda a vida, sequelas de um abuso brutal e socialmente consentido. Culpas que originam violência perante si próprias, escondendo a dor no álcool, escondendo o corpo do seu próprio sentir, gemendo baixinho a mágoa que nem o tempo apazigua.
Este trabalho, mais que um momento de dança-teatro é um documento sentido e profundamente ilustrativo da miséria humana, que impõe uma reflexão urgente sobre o tema dos abusos sexuais infligidos a mulheres. Interpretado por Aline Catarino, Nuno Faísca, Patrícia Vito, Pedro Ramos, Sónia Botelho, Susana Nunes e Verónica Guerreiro, são de destacar as interpretações de Sónia Botelho, pela força, Susana Nunes, pela sensualidade e Pedro Ramos, pela interpretação convincente do misógino comandante do cargueiro. Verónica Guerreiro, Aline Catarino, Nuno Faísca e Patrícia Vito assentaram a sua interpretação na corporalidade, notavelmente dirigida por Rita Alves. A sonoplastia de Susana Nunes assume-se como uma personagem que interage com os actores e reforça a mensagem brutal do espectáculo. O desenho de luz de Noé Amorim, é adequado ao contexto sombrio do tema. As projecções no final, no entanto, para além de estarem a ser recorrentes nas produções mais recentes, converteram-se numa espécie de redundância, pois não acrescentam nada ao horror da vivência daquelas mulheres, provocando um mal-estar gratuito no espectador. Os gemidos, as auto agressões, o rastejar no medo, seriam por si só um final com força suficiente para deixar o espectador num estado de angústia muito peculiar.
Este espectáculo mostra, uma vez mais, como a companhia AL-MaSRAH se impôs no Algarve como um agente cultural capaz de dar aos espectadores algo mais que simples entretenimento. Com este grupo o público sabe que à prestação dos actores se alia um tema de reflexão que urge meditar e até agir para transformar. Porque mostra não só os abstractos dirigentes, mas a gente comum, que se identifica com o público e que provoca a vontade de mudar. Foi o caso deste espectáculo, que não obteve apoio por parte do Instituto das Artes pelo facto daquela instituição considerar que a companhia não tinha condições para a sua exequibilidade. O espectáculo está aí para mostrar como os mais doutos se podem enganar. A injustiça causada pela falta de financiamento ficará na vida desta companhia e no prejuízo do público algarvio.
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