Quem a conhece há mais de 20 anos diz que ela está na mesma. Quem a acabou de conhecer encontra nela a frescura de uma jovem que transporta consigo a candura no olhar e a determinação na alma. Hélia Correia, uma das autoras da Antígona que a ACTA estrear em Portimão no próximo dia 12, esteve em Faro a assistir a esta peça que contém escrita sua. O encontro da autora com os dramaturgistas e com o espectáculo foi surpreendente.
Hélia Correia deu voz a uma personagem que falava em grego no espectáculo Édipo Rei, com encenação de João Mota, levado a cena pela Comuna. Apaixonou-se pela cultura grega e escreveu Perdição, exercício sobre Antígona, um dos textos mais belos e intensos que conheço sobre a heroína de Sófocles. Continuou a estudar intensamente a cultura helenística de tal forma que hoje, diz, já não escreveria aquele texto. Porque hoje, ninguém faz a Antígona como os gregos a fizeram. Como dramaturgista, isto é, como a pessoa que pegou nas palavras da autora e as pôs em cena, de forma a poderem ser representadas dentro de um determinado universo de sentido, não resisti em perguntar à autora:
Ana Oliveira – Como se sentiu ao ouvir as suas palavras dentro daquele espectáculo?
Hélia Correia – Reconheci algumas falas minhas e achei que faziam sentido naquele contexto. Mas hoje já não olho para a Antígona como olhava antes de a ter estudado a fundo.
AO – O que mudou com o aprofundar da cultura grega clássica?
HC – A primeira vez que vi a Antígona, foi numa sessão muito clandestina, levada a cena pelo grupo cénico dos bancários. Foi num sítio escondido, numa sessão feita só para algumas pessoas porque essa peça estava proibida. Era alguém que enfrentava o poder, a tirania, e esses temas estavam proibidos antes do 25 de Abril. Mas foi uma sessão inesquecível e eu achava que a Antígona deveria ser assim. Hoje acho que o verdadeiro progressista é o Creonte.
AO – Como é que um ditador pode ser progressista?
HC – Provavelmente os gregos não o viam com esta nossa vião contemporânea de ditador. É ele é quem vem escrever a nova lei e insurgir-se contra o que se fez sempre, apenas por tradição. Ele vai contrariar o espírito obstinado dos gregos. E isso foi um ponto fundamental numa época em que a democracia e a escrita das leis estavam a dar os seus primeiros passos.
AO – Mas hoje em dia, não acha que a Antígona se pode comparar a qualquer um de nós, que luta por um mundo mais justo?
HC – Sim, a Antígona, tal como é estudada, é uma rapariga normal que se confronta a certa altura da vida com uma situação em que tem de decidir eticamente. Gostei muito da opção da ACTA em ter escolhido para o papel de Antígona uma jovem que dá precisamente a ideia do que esta heroína de Sófocles deve ser.
AO – Mas na sua visão é ela que está a ser retrógrada.
HC – Na visão dos gregos Antígona representa o espírito antigo em que se cumprem preceitos sem se saber muito bem porquê. Creonte vem trazer a diferença porque ousa escrever uma lei nova.
AO – Mas a Antígona tem sido sempre reescrita ao longo dos séculos sob a perspectiva de alguém que se rebela contra o abuso do poder.
HC – Sim, até porque há cinco factores que motivam essa reescrita. É um confronto entre uma pessoa jovem e uma mais velha. É uma mulher face a um homem. Depois temos a questão das leis escritas com as leis não escritas. O conflito da família com o estado e o conflito do Estado face à religião. Isso são questões fundamentais que inquietam e são por si só motivadoras da reescrita. Mas é impossível fazê-la como os gregos o fariam.
AO – Neste espectáculo quisemos também evidenciar, para além do conflito político, o conflito dentro da própria família. E foi aí que entrou o seu texto.
HC – Sim, e achei que fazia todo o sentido vê-lo recuperado nas falas com a irmã, com a mãe, com a ama. A Antígona não é uma deusa, é uma rapariga com conflitos idênticos aos das raparigas da sua idade. Só que teve a vivência do exílio.
AO – Ainda me custa ver o Creonte como um progressista…
HC – Na história, Creonte é o único que muda de opinião, o único que não é inflexível. No final vai à tumba ver se ainda a pode salvar. A Antígona morre por ser obstinada e intransigente.
AO – Na nossa versão, que recuperámos da Maria Zambrano, Antígona não morre e qualquer um de nós a pode resgatar.
HC – De uma perspectiva filosófica faz sentido. Assim como todo o segundo acto deve ser visto numa perspectiva filosófica e não helenística. Na perspectiva clássica, não faz sentido.
AO – No fundo, Sófocles ofereceu Antígona à humanidade. E, se bem que nunca podemos recuperar a história, podemos tocar alguns pontos que permanecem na grande espiral do tempo. Hoje em dia talvez precisemos de uma Antígona que nos abra a porta à esperança.
HC – Claro, e nesse aspecto, no sentido filosófico, faz todo o sentido. Mas não na visão clássica, se nos quisermos manter fiéis ao original.
AO – Mas nós não quisemos. Quisemos antes transgredir o original de forma a poder ser reconhecido por qualquer um de nós.
HC – Terá sido por isso que introduziram os deuses? Pelo prazer da transgressão? Na versão clássica não entram os deuses, nem em nenhuma outra…
AO – Pois não, foi uma opção nossa para mostrarmos de uma forma mais presente o seu abandono. O abandono de um ser que está junto de outro, observando o seu percurso trágico, e não faz nada para o ajudar. É como se estivéssemos a ver alguém a afogar-se ao nosso lado e não fizéssemos nada.
HC – Por isso têm um ar tão fora de toda a estética do espectáculo…
AO – Sim, por isso nos vingámos deles e os construímos dentro de uma estética kitch. Pelo seu abandono. Que é algo que Maria Zambrano também refere quando diz, na sua Antígona: “A verdade é onde nos arrojam os deuses quando nos abandonam. É o dom do seu abandono”.
HC – Mas foram muito maus para com os deuses…
AO – Fomos. Assumidamente, porque nos abandonaram. É como se tivessem num outro plano, fora de tudo, brincando como crianças, indiferentes à tragédia humana. Contudo, invejosos dos humanos.
HC – Que se verifica na declaração de amor da Ártemis, que recuperaram do texto do António Pedro.
AO – Sim, mas mesmo aí pusemos a deusa a falar numa língua estranha, fazendo com que permanecesse num outro plano. Com os deuses, há sempre um distanciamento.
HC – Faz algum sentido, nessa perspectiva.
AO - Mas para além do abandono dos deuses, abrimos a porta à esperança, pondo uma criança a resgatar Antígona. É um futuro, com base no amor, que construímos quando retiramos Antígona da tumba.
HC – Apesar de não ser a visão do Sófocles, é uma visão que filosoficamente faz sentido.
Hélia Correia deu voz a uma personagem que falava em grego no espectáculo Édipo Rei, com encenação de João Mota, levado a cena pela Comuna. Apaixonou-se pela cultura grega e escreveu Perdição, exercício sobre Antígona, um dos textos mais belos e intensos que conheço sobre a heroína de Sófocles. Continuou a estudar intensamente a cultura helenística de tal forma que hoje, diz, já não escreveria aquele texto. Porque hoje, ninguém faz a Antígona como os gregos a fizeram. Como dramaturgista, isto é, como a pessoa que pegou nas palavras da autora e as pôs em cena, de forma a poderem ser representadas dentro de um determinado universo de sentido, não resisti em perguntar à autora:
Ana Oliveira – Como se sentiu ao ouvir as suas palavras dentro daquele espectáculo?
Hélia Correia – Reconheci algumas falas minhas e achei que faziam sentido naquele contexto. Mas hoje já não olho para a Antígona como olhava antes de a ter estudado a fundo.
AO – O que mudou com o aprofundar da cultura grega clássica?
HC – A primeira vez que vi a Antígona, foi numa sessão muito clandestina, levada a cena pelo grupo cénico dos bancários. Foi num sítio escondido, numa sessão feita só para algumas pessoas porque essa peça estava proibida. Era alguém que enfrentava o poder, a tirania, e esses temas estavam proibidos antes do 25 de Abril. Mas foi uma sessão inesquecível e eu achava que a Antígona deveria ser assim. Hoje acho que o verdadeiro progressista é o Creonte.
AO – Como é que um ditador pode ser progressista?
HC – Provavelmente os gregos não o viam com esta nossa vião contemporânea de ditador. É ele é quem vem escrever a nova lei e insurgir-se contra o que se fez sempre, apenas por tradição. Ele vai contrariar o espírito obstinado dos gregos. E isso foi um ponto fundamental numa época em que a democracia e a escrita das leis estavam a dar os seus primeiros passos.
AO – Mas hoje em dia, não acha que a Antígona se pode comparar a qualquer um de nós, que luta por um mundo mais justo?
HC – Sim, a Antígona, tal como é estudada, é uma rapariga normal que se confronta a certa altura da vida com uma situação em que tem de decidir eticamente. Gostei muito da opção da ACTA em ter escolhido para o papel de Antígona uma jovem que dá precisamente a ideia do que esta heroína de Sófocles deve ser.
AO – Mas na sua visão é ela que está a ser retrógrada.
HC – Na visão dos gregos Antígona representa o espírito antigo em que se cumprem preceitos sem se saber muito bem porquê. Creonte vem trazer a diferença porque ousa escrever uma lei nova.
AO – Mas a Antígona tem sido sempre reescrita ao longo dos séculos sob a perspectiva de alguém que se rebela contra o abuso do poder.
HC – Sim, até porque há cinco factores que motivam essa reescrita. É um confronto entre uma pessoa jovem e uma mais velha. É uma mulher face a um homem. Depois temos a questão das leis escritas com as leis não escritas. O conflito da família com o estado e o conflito do Estado face à religião. Isso são questões fundamentais que inquietam e são por si só motivadoras da reescrita. Mas é impossível fazê-la como os gregos o fariam.
AO – Neste espectáculo quisemos também evidenciar, para além do conflito político, o conflito dentro da própria família. E foi aí que entrou o seu texto.
HC – Sim, e achei que fazia todo o sentido vê-lo recuperado nas falas com a irmã, com a mãe, com a ama. A Antígona não é uma deusa, é uma rapariga com conflitos idênticos aos das raparigas da sua idade. Só que teve a vivência do exílio.
AO – Ainda me custa ver o Creonte como um progressista…
HC – Na história, Creonte é o único que muda de opinião, o único que não é inflexível. No final vai à tumba ver se ainda a pode salvar. A Antígona morre por ser obstinada e intransigente.
AO – Na nossa versão, que recuperámos da Maria Zambrano, Antígona não morre e qualquer um de nós a pode resgatar.
HC – De uma perspectiva filosófica faz sentido. Assim como todo o segundo acto deve ser visto numa perspectiva filosófica e não helenística. Na perspectiva clássica, não faz sentido.
AO – No fundo, Sófocles ofereceu Antígona à humanidade. E, se bem que nunca podemos recuperar a história, podemos tocar alguns pontos que permanecem na grande espiral do tempo. Hoje em dia talvez precisemos de uma Antígona que nos abra a porta à esperança.
HC – Claro, e nesse aspecto, no sentido filosófico, faz todo o sentido. Mas não na visão clássica, se nos quisermos manter fiéis ao original.
AO – Mas nós não quisemos. Quisemos antes transgredir o original de forma a poder ser reconhecido por qualquer um de nós.
HC – Terá sido por isso que introduziram os deuses? Pelo prazer da transgressão? Na versão clássica não entram os deuses, nem em nenhuma outra…
AO – Pois não, foi uma opção nossa para mostrarmos de uma forma mais presente o seu abandono. O abandono de um ser que está junto de outro, observando o seu percurso trágico, e não faz nada para o ajudar. É como se estivéssemos a ver alguém a afogar-se ao nosso lado e não fizéssemos nada.
HC – Por isso têm um ar tão fora de toda a estética do espectáculo…
AO – Sim, por isso nos vingámos deles e os construímos dentro de uma estética kitch. Pelo seu abandono. Que é algo que Maria Zambrano também refere quando diz, na sua Antígona: “A verdade é onde nos arrojam os deuses quando nos abandonam. É o dom do seu abandono”.
HC – Mas foram muito maus para com os deuses…
AO – Fomos. Assumidamente, porque nos abandonaram. É como se tivessem num outro plano, fora de tudo, brincando como crianças, indiferentes à tragédia humana. Contudo, invejosos dos humanos.
HC – Que se verifica na declaração de amor da Ártemis, que recuperaram do texto do António Pedro.
AO – Sim, mas mesmo aí pusemos a deusa a falar numa língua estranha, fazendo com que permanecesse num outro plano. Com os deuses, há sempre um distanciamento.
HC – Faz algum sentido, nessa perspectiva.
AO - Mas para além do abandono dos deuses, abrimos a porta à esperança, pondo uma criança a resgatar Antígona. É um futuro, com base no amor, que construímos quando retiramos Antígona da tumba.
HC – Apesar de não ser a visão do Sófocles, é uma visão que filosoficamente faz sentido.
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