No trabalho "És tu Zé? Valsa Lenta" José Laginha aventurou-se no campo delicado e complexo da doença mental, muito concretamente, como explicou no final aos espectadores, no que diz respeito ao sentimento de ausência, baseado na obra de José Cardoso Pires De Profundis.
Logo no início o público é confrontado com um cenário branco a evocar a sua simbologia mais comum: a ausência, a morte. Cor de passagem, de ritual que conduz ao desaparecimento da consciência. Luminosidade agressiva dos hospitais, por onde se passeavam um conjunto de oito personagens trajando cinzento, simbologia de dor intensa e de luta contra a perda de consciência. Sete homens e uma mulher coabitando a mágoa da ausência. Sete homens e uma mulher porque, para o coreógrafo, as mulheres padecem menos da ausência pelos elos naturais da maternidade. As oito personagens evoluem dentro de um percurso de dor, cada uma lutando como pode contra os seus fantasmas, os seus traumas, as suas ausências. Inventando personagens dentro de si próprios para lutar contra si, contra a ausência de memória. Como disse o escritor:
“Essa separação foi sempre ambígua. De vez em quando lembrava-me do que tinha sido, mas não me importava. Nunca tive um só momento de angústia. O outro nunca foi uma figura real. Era um indivíduo, que eu tinha sido. O que andava por ali era uma sombra dele. Uma projecção, uma metamorfose. Tinha perdido todas as características culturais. Era a sombra branca, como lhe chamei... Estive sem memória. Sem memória é a morte cerebral. Não se raciocina. Deixei de saber ler, de saber escrever, não fazia nada."
E ali estavam as personagens lutando contra. Os limites impostos pelos outros, como se o espaço de um doente mental fosse o espaço do criminoso. Ironia do coreógrafo lembrando o público que os verdadeiros criminosos que poluem e envenenam o planeta continuam intocáveis a querer engolir os outros países. No fundo toda a coreografia que se assume enquanto tal é portadora de um sistema de signos geradores de significados múltiplos alegóricos e metafóricos. E em toda esta coreografia se sentiam percursos geradores de símbolos riquíssimos. Desde a necessidade do Homem se encontrar desenhando o seu próprio Norte na bússola do seu quarto, mas desnorteado para os outros, até à simbologia do laranja nos pequenos adereços peculiares de cada personagem. O laranja, símbolo do equilíbrio e por isso mesmo usado nas túnicas dos monges budistas, pontuando aqui e ali a ausência do equilíbrio. Curiosamente o laranja era a cor com que trajava Dionísio, o deus arquetípico do desregramento que origina a revelação. A revelação através da loucura. Tal como laranja eram as canetas que a mulher transportava para escrever, para comunicar, quebrando por instantes a ausência. Quando as vozes dos loucos não chegam ao céu dos microfones que se fazem ouvir e se tem de dizer o que se tem para dizer, nem que seja rindo de tudo. Um riso nervoso, um riso triste, diferente do riso saudável dos que não se sentem sós. Tal como Cardos Pires refere no seu De Profundis:
“Até que certa manhã acordo em claridade aberta com gargalhadas a crepitarem à minha volta. Dum momento para o outro, o sentido de presença. E tudo concreto, tudo vivo. O quarto: para lá da janela, o palácio de cristais dourados (que era o Hotel Penta, quem diria) e à minha frente dois vultos que me faziam companhia a desafiarem-se à gargalhada de cama para cama, um deles com um braço paralisado ao longo do corpo, o outro um velho de auscultadores ao pescoço, com um walkman debaixo do lençol. Cada qual a rir, a rir, e a acenar com um lagarto de plástico que soltava uma língua em tremular de labareda.”
As personagens riam depois de terem marchado e varrido da memória as botas que os obrigaram a marchar. Possível evocação de memórias de guerra que se querem esquecer. Como os corpos, pendurados nas camas de hospital, esquecidos, como se se tratassem de algo que espera para ser lavado e recuperado com cheiro a novo e desejado. O desejo que se sente quando as personagens se olham como se se vissem pela primeira vez, com a inocência e o branco das crianças. Quando se adivinham jogos eróticos debaixo da longa saia da mulher que esconde um corpo de que se quer ver libertada. Quando há um acariciar com os pés a face de um outro, que se pisa e domina, mas que também se ama. Quando há um evocar de toda uma sensualidade numa vida que se perdeu na arena, dançando em frente a um touro que poderá despedaçar a vida. Ou a memória. Ou a metade do cérebro que vemos perdida no chão, recuperada sob oito corpos igualmente perdidos, dobrados sobre si próprios tentando enganar a ausência. Mais uma vez, Cardos Pires escreve na sua Valsa Lenta:
“... Andava por ali, transposto para qualquer Alguém de mim num território satélite sem vida. Ainda que árida, a atmosfera era leve e luminosa e eu transitava pelas pessoas com um longo olhar sem rumo. Um animal a planar dentro duma redoma de vidro, é como me imagino naquela altura. Nesse período, já o disse, as palavras que me chegavam vinham cegas. Sombras não havia nem podia haver numa claridade tão absorvente (só hoje enquanto escrevo é que me dou conta disso) não havia sombras não podia haver a não ser a do Outro que andava por lá o Outro que afinal não era mais que uma sombra saída de algures de mim e a deslocar-se por si só não se sabe em que direcção nem com que objectivo uma sombra branca corrida no branco como foi que desse apagamento consegui reter alguma luzinha a brilhar até agora é coisa que ainda estou para entender mas retive mesmo? retive - melhor assim.”
De vez em quando há imagens projectadas na parede, memórias cinzentas de uma rosa, que já foi mais colorida, num país cinzento onde a indefinição e a falta de memória, sobretudo para a cultura, se intensificam. Perturbante foi o documentário de António Reis sobre o Hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, mostrando o redondel onde estavam internados os doentes considerados perigosos.
Dotados de uma boa técnica mas sobretudo de uma boa expressão corporal o espectáculo cresce ganhando consistência. Depois do intervalo regressamos a um ambiente onde o palco, forrado com um material brilhante, reflecte as imagens e as frases, reflexos de nós mesmos, num mundo absurdo. Aí nós reflectimos, mais uma vez, sobre a linha que separa a loucura da normalidade e vemos que não está lá. Que se apaga e volta a aparecer. Ao sabor das ausências. Como a música, morna, melosa e insistente. Não se dá por ela, mas está lá. E volta, e insiste com uma nova roupagem para ver se nos engana. Como os sonhos. E nós às vezes deixamo-nos ir, porque gostamos. Outras vezes conseguimos despistar o próprio sonho e dizer-lhe que não.
José Cardos Pires também disse: “Cada vez que se escreve há uma preocupação fundamental, que já não se sabe se é de exprimir-se bem ou mal, é fundamentalmente de destruir para criar. Eu penso que tem que haver destruição para se criar.” Aqui houve destruição, transgressão, mas sobretudo criação. De uma dança, verdadeiramente contemporânea, no Algarve mas com linguagem universal.
“Essa separação foi sempre ambígua. De vez em quando lembrava-me do que tinha sido, mas não me importava. Nunca tive um só momento de angústia. O outro nunca foi uma figura real. Era um indivíduo, que eu tinha sido. O que andava por ali era uma sombra dele. Uma projecção, uma metamorfose. Tinha perdido todas as características culturais. Era a sombra branca, como lhe chamei... Estive sem memória. Sem memória é a morte cerebral. Não se raciocina. Deixei de saber ler, de saber escrever, não fazia nada."
E ali estavam as personagens lutando contra. Os limites impostos pelos outros, como se o espaço de um doente mental fosse o espaço do criminoso. Ironia do coreógrafo lembrando o público que os verdadeiros criminosos que poluem e envenenam o planeta continuam intocáveis a querer engolir os outros países. No fundo toda a coreografia que se assume enquanto tal é portadora de um sistema de signos geradores de significados múltiplos alegóricos e metafóricos. E em toda esta coreografia se sentiam percursos geradores de símbolos riquíssimos. Desde a necessidade do Homem se encontrar desenhando o seu próprio Norte na bússola do seu quarto, mas desnorteado para os outros, até à simbologia do laranja nos pequenos adereços peculiares de cada personagem. O laranja, símbolo do equilíbrio e por isso mesmo usado nas túnicas dos monges budistas, pontuando aqui e ali a ausência do equilíbrio. Curiosamente o laranja era a cor com que trajava Dionísio, o deus arquetípico do desregramento que origina a revelação. A revelação através da loucura. Tal como laranja eram as canetas que a mulher transportava para escrever, para comunicar, quebrando por instantes a ausência. Quando as vozes dos loucos não chegam ao céu dos microfones que se fazem ouvir e se tem de dizer o que se tem para dizer, nem que seja rindo de tudo. Um riso nervoso, um riso triste, diferente do riso saudável dos que não se sentem sós. Tal como Cardos Pires refere no seu De Profundis:
“Até que certa manhã acordo em claridade aberta com gargalhadas a crepitarem à minha volta. Dum momento para o outro, o sentido de presença. E tudo concreto, tudo vivo. O quarto: para lá da janela, o palácio de cristais dourados (que era o Hotel Penta, quem diria) e à minha frente dois vultos que me faziam companhia a desafiarem-se à gargalhada de cama para cama, um deles com um braço paralisado ao longo do corpo, o outro um velho de auscultadores ao pescoço, com um walkman debaixo do lençol. Cada qual a rir, a rir, e a acenar com um lagarto de plástico que soltava uma língua em tremular de labareda.”
As personagens riam depois de terem marchado e varrido da memória as botas que os obrigaram a marchar. Possível evocação de memórias de guerra que se querem esquecer. Como os corpos, pendurados nas camas de hospital, esquecidos, como se se tratassem de algo que espera para ser lavado e recuperado com cheiro a novo e desejado. O desejo que se sente quando as personagens se olham como se se vissem pela primeira vez, com a inocência e o branco das crianças. Quando se adivinham jogos eróticos debaixo da longa saia da mulher que esconde um corpo de que se quer ver libertada. Quando há um acariciar com os pés a face de um outro, que se pisa e domina, mas que também se ama. Quando há um evocar de toda uma sensualidade numa vida que se perdeu na arena, dançando em frente a um touro que poderá despedaçar a vida. Ou a memória. Ou a metade do cérebro que vemos perdida no chão, recuperada sob oito corpos igualmente perdidos, dobrados sobre si próprios tentando enganar a ausência. Mais uma vez, Cardos Pires escreve na sua Valsa Lenta:
“... Andava por ali, transposto para qualquer Alguém de mim num território satélite sem vida. Ainda que árida, a atmosfera era leve e luminosa e eu transitava pelas pessoas com um longo olhar sem rumo. Um animal a planar dentro duma redoma de vidro, é como me imagino naquela altura. Nesse período, já o disse, as palavras que me chegavam vinham cegas. Sombras não havia nem podia haver numa claridade tão absorvente (só hoje enquanto escrevo é que me dou conta disso) não havia sombras não podia haver a não ser a do Outro que andava por lá o Outro que afinal não era mais que uma sombra saída de algures de mim e a deslocar-se por si só não se sabe em que direcção nem com que objectivo uma sombra branca corrida no branco como foi que desse apagamento consegui reter alguma luzinha a brilhar até agora é coisa que ainda estou para entender mas retive mesmo? retive - melhor assim.”
De vez em quando há imagens projectadas na parede, memórias cinzentas de uma rosa, que já foi mais colorida, num país cinzento onde a indefinição e a falta de memória, sobretudo para a cultura, se intensificam. Perturbante foi o documentário de António Reis sobre o Hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, mostrando o redondel onde estavam internados os doentes considerados perigosos.
Dotados de uma boa técnica mas sobretudo de uma boa expressão corporal o espectáculo cresce ganhando consistência. Depois do intervalo regressamos a um ambiente onde o palco, forrado com um material brilhante, reflecte as imagens e as frases, reflexos de nós mesmos, num mundo absurdo. Aí nós reflectimos, mais uma vez, sobre a linha que separa a loucura da normalidade e vemos que não está lá. Que se apaga e volta a aparecer. Ao sabor das ausências. Como a música, morna, melosa e insistente. Não se dá por ela, mas está lá. E volta, e insiste com uma nova roupagem para ver se nos engana. Como os sonhos. E nós às vezes deixamo-nos ir, porque gostamos. Outras vezes conseguimos despistar o próprio sonho e dizer-lhe que não.
José Cardos Pires também disse: “Cada vez que se escreve há uma preocupação fundamental, que já não se sabe se é de exprimir-se bem ou mal, é fundamentalmente de destruir para criar. Eu penso que tem que haver destruição para se criar.” Aqui houve destruição, transgressão, mas sobretudo criação. De uma dança, verdadeiramente contemporânea, no Algarve mas com linguagem universal.
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