Wednesday, August 15, 2007

Um regresso Benvindo


O cine teatro louletano tornou-se pequenino para acolher o coreógrafo Benvindo Fonseca, que nos trouxe quatro trabalhos que constituíram um todo dentro de um espectáculo. O primeiro foi um excerto da criação “Uma noite com Ella”. Só o nome é suficientemente sedutor para cativar todos os amantes do jazz e de Ella Fitzgerald. E de facto, mesmo os que à partida poderiam criar alguma resistência relativamente a esse género musical, dificilmente não se deixariam levar por um deslumbramento ao ver um jogo de sedução dançado ao som da voz da grande senhora do jazz. E energia que existe no início de um encantamento foi exposta naquele pás-de-deux sedutor. Um abrir do apetite para a coreografia no seu todo que esperamos poder ver um dia no Algarve. A segunda coreografia era uma homenagem a Bocage. Esse foi o ponto de viragem que conduziu o público a uma surpresa e a um estado de assombro. Segundo o coreógrafo, esta coreografia, “Murmúrios”, "representa tudo o que temos dentro de nós e não conseguimos fazer". Um jovem bailarino com uma portentosa saia concebida por Tenente conseguia dizer sonetos de Bocage só com o corpo. Esse corpo emanava uma energia criadora que, com o efeito da música, provocava no espectador uma inquietação. Essa inquietação era também provocada por uma sugestão de androginia patente no gesto, na expressão e no figurino. Os véus cor de fogo são matrizes de significados. O véu oratório sobre a cabeça rompe-se, dando origem a um saco vitelino de onde irrompe uma outra mulher solta e sensual. A língua solta-se ao mesmo tempo que o corpo, criando uma unidade semiótica. A descoberta do corpo leva à descoberta do verbo, e vice-versa. Por fim, da profusão de saias e tecido leves e femininos que se conseguiram libertar do jugo da saia exterior, forte, rígida, quase militar. Irrompe uma outra forma, fálica, como que de assunção da sexualidade e que faz o ser renascer para a vida. Uma vida que até então não tinha vivido de forma autêntica. Surpreendente, levando os mais cépticos a acreditar que ainda existem universos por descobrir no mundo da dança.
A terceira coreografia traz-nos o tom confessional e auto-biográfico de Benvindo Fonseca. Ao som daquela que se pode considerar a diva, Callas, o bailarino faz um percurso lento ao longo do corredor central da plateia do teatro, qual via sacra tormentosa antes de ascender ao palco. O figurino roxo conduz-nos à imagem do Senhor dos Passos e do sofrimento. Antes da ascensão ao palco há o despojamento de si e a libertação da dor através do lançamento de pétalas vermelhas que caem profusamente sobre os espectadores. A chegada ao palco, depois da subida tormentosa, é marcada pelo abandono do manto, como se lhe tivesse nascido uma segunda pele. Aí se dá o renascer para um outro estado de criação e de estar na vida. No palco o bailarino desenvolve uma coreografia mais libertadora que conflui numa atitude de recolhimento e relação com o transcendente. Esta evolução libertadora conduz o espectador a um sentimento de bem estar que o assalta inesperadamente. Grandioso, de facto.
A última coreografia, Makeba, inspirada nas canções de Miriam Makeba, é uma lufada de ar fresco. Os figurinos, soltos, evocam as cores quentes de África e deixam respirar toda a movimentação rápida e vigorosa dos bailarinos numa homenagem às crianças de Moçambique. Os bailarinos sorriem e sente-se o bem-estar provocado por todos aqueles ritmos, melodias, e pelos corpos que os desenham no espaço. O olhar do espectador consegue juntar-se aos corpos dos bailarinos num sentido comum, fazendo nascer daquele momento efémero um prazer uníssono. Esta coreografia é de facto libertadora no sentido estético mais profundo, uma vez que se tornam claras as comoções vividas e a energia que o grupo tem entre si. E sem esta cumplicidade entre os bailarinos e esta capacidade de passar emoções, a dança deixa de ter um sentido purificador.
É de louvar e agradecer o regresso de Benvindo Fonseca aos palcos, após uma suspensão de quatro anos, pois o seu regresso amadurecido contribui para a afirmação da dança contemporânea em Portugal. A companhia de Benvindo Fonseca está a preparar uma visão coreográfica do texto de Lorca "A Casa de Bernarda Alba". Esta versão vai alternar com uma encenação teatral da mesma peça. A estreia está marcada para o Teatro S. Luís, em Lisboa, passando depois por Évora e pelo Teatro Camões, em Setembro. Esperemos um dia poder vê-la também aqui no Algarve.

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